S ABER & EDUCAR 31(2) / 2022: “100 ANOS DE PAULO FREIRE: PRÁTICAS, APRENDIZAGENS E PESQUIS AS”

A DIALOGICIDADE DE PAULO FREIRE COMO

PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NA

EDUCAÇÃO

Ana Sofia Clemente Gonçalves

1

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia e CeiED


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Resumo:


Correspondendo às diretrizes aspiradas pela UNESCO (1994, 2009, 2015, 2019), cabe à Educação encontrar, não apenas um caminho reflexivo, acerca da sua contribuição na vida do Homem, como também corresponder às necessidades inerentes ao direito pela Diferença.

Na atualidade, e face às premissas de uma Educação democrática, são exigidas às escolas uma metodologia que se reja pelo compromisso a um “(…) processo que vise responder à diversidade das necessidades e potencialidades de todos e de cada um.” (DL nº.54/2018, p.2919).

A realização deste artigo prioriza evidenciar um dos contributo de Paulo Freire, que, ao exigir uma sociedade mais justa, possa ascender à emancipação educativa. Propomos, desta forma, refletir, sobre a dialogicidade, como estratégia preponderante no processo de ensino e aprendizagem de qualquer individuo.


Palavras-chave:

Educação; Diferença; Dialogicidade.


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DATA DE RECEÇÃO: 2022/08/09

2

DATA DE ACEITAÇÃO: 2022/11/14

Abstract:


Corresponding to the guidelines aspired by UNESCO (1994, 2009, 2015, 2019), it is up to Education to find not only a reflective path, about its contribution in the life of Human being, but also to respond to the inherent needs of the right for Difference.

Currently, and in view of the premises of a demo- cratic education, schools are required to have a methodology that is guided by the commitment to a “(…) process that aims to respond to the diversity of needs and potential of each and every one.” (DL nº.54/2018, p.2919).

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The realization of this article prioritizes highli- ghting one of Paulo Freire’s contributions, who, by demanding a more just society, where one can ascend to educational emancipation. We therefore propose to reflect on dialogicity as a preponderant strategy in the teaching and learning process of any individual.


Keywords:

Education; Difference; Dialogicity.


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Nós somos todos diferentes e a maneira como se reproduzem os seres vivos é programada para que o sejamos. É por isso que o homem teve a necessidade, um dia, de fabricar o con- ceito de igualdade.

Se nós fôssemos todos idênticos, como uma po- pulação de bactérias, a ideia de igualdade seria perfeitamente inútil.

(Freire, 2014, p. 135 [1994, p. 97]).

Introdução

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Num atual cenário sócio educativo, em que se recon- figura uma dinâmica constante na realidade escolar, o individuo procura ascender ao reconhecimento da Educação, como um direito pleno e fundamental, para a sua própria emancipação educativa.

Face à pluralidade existente nas escolas do século XXI, deparamo-nos com algumas assimetrias, no que con- cerne à forma como se lida com a Diferença, perfis e ritmos de aprendizagem, patologias e características individuais distintas, e à forma como se pretende participar na escolarização. Sendo aberto a Todos, o Direito à Educação, ainda carece da igualdade de oportunidades, para que se consiga efetivar uma aces- sibilidade plena ao ensino, direito que é iminente a qualquer um.

Ao enfocar a “(…) dialogicidade, essência da educação como prática da liberdade”, presente no capítulo 3, da Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire (1987) procurou refletir, por meio do diálogo, e avançar em direção à prática da liberdade. Marcando a história da Educação, a proposta do pedagogo brasileiro passa pela vivência humanizada, advinda das experiências do sujeito, me- diatizada pelo mundo e pautada pela liberdade.

O autor salienta o diálogo como instrumento funda- mental para que os sujeitos possam enfrentar e su- perar as situações que os oprimem, procurando res- taurar o seu lugar na sociedade, principalmente em espaços formativos e escolares. Mecanismo que tende a proporcionar a produção de condições objetivas, com vista à efetiva prática da liberdade e do direito equi- tativo à Educação, no combate às desigualdades de acesso e de participação da mesma.

Para isso, é fundamental entender o diálogo como ele- mentar para aprimorar a prática pedagógica, objetivando a construção do conhecimento e a sua aplicabilidade na Comunidade Educativa, em que o aluno está inserido.

No ano da comemoração do 1º Centenário do nasci- mento de Paulo Freire, estabelecemos o paralelismo

da dialogicidade freiriana, com a aprendizagem di- alógica, presente na sugestão das Comunidades de Aprendizagem, propostas pela Universidade de Barce- lona e corroboradas pela Direção Geral de Educação.


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A Educação e a relação com a Dialogicidade

Poderemos dizer que toda a obra de Freire, inovadora para a época em que vivera, contribuiu para o seu enorme legado, trazendo consigo a motivação e a possibilidade de fazer com que as classes populares se tornassem “(…) sujeitos e agentes da transformação da realidade social, produzindo novas possibilidades educativas e sociais de forma ampla.” (Pereira & Sartori, 2020, p. 652).

Ao longo da Pedagogia do Oprimido (1987), Freire refere-se à Educação como prática da liberdade, fazendo a analogia entre a classe plebeia com a população iminentemente oprimida, a qual se mantinha submissa do regime político atual, sem hipótese de poder dialogar. A ausência do direito à palavra, ao poder de dialogar, ia mantendo o povo alienado, sob manipulação alheia, o que não gerava ação simbólica de liberdade.

Segundo Pereira e Sartori (2020, p. 653), “(…) o diálogo constitui-se em instrumento para que os sujeitos em condição de subalternidade possam enfrentar e superar as situações que os oprimem, buscando restaurar o seu lugar de sujeito no e com o mundo.” Neste sentido, o poder do diálogo, era apresentado por Freire como devendo ser “(…) essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação”. (Freire, 1987, p. 20). O autor indica o amor como antídoto à dominação, do opressor, pois, segundo ele “(…) o ato de amor está em comprometer- se com a sua causa. A causa de sua libertação” (Freire,1987, p. 20).

No campo educacional, ao juntarmos estes dois conceitos – diálogo e amor – leva-nos a refletir, criticamente, acerca do seu conceito antagónico – dominação (Freire, 1987). Apontam-se, desta forma,

práticas anti dialógicas, como espelho reprodutor de injustiças sociais e do fortalecimento de ações pedagógicas conservadores e não ajustadas ao exigido por uma Educação democrática.

Assim, ao invés da opressão, a dialogicidade, torna- se exigência radical para que os indivíduos sejam interlocutores, utilizando os mais variados espaços escolares como meios de comunicação. Neste caso, e segundo Freire, “(…) obstaculizar a comunicação é transformá-los [os homens e mulheres] em quase ‘coisas’ e isto é tarefa e o objetivo dos opressores, não dos revolucionários” (Freire, 1987, p. 125).

Sendo a comunicação, neste caso específico, o diálogo, um processo relacional, qual o seu papel em território educacional? Como se operacionaliza a dialogicidade na construção do ensino e aprendizagem? Como construir práticas participativas, dialógicas e democráticas, na realidade escolar atual?

Neste caso concreto, fazendo o paralelismo entre a Educação e a dialogicidade, de acordo com Freire (1987), podemos dizer que a prática educativa requer uma relação de mútuo respeito entre o mestre e o aprendiz, entre o professor e o aluno. Ambos são intervenientes nesta dinâmica educacional, e como tal, peças fundamentais para a adoção da problematização como possibilidade de construção do conhecimento.

Assim, e segundo Pereira e Sartori (2020, p. 655),

(…) o conhecimento produzido, na perspetiva do logos, procura por meio da emersão dos fenómenos, produzir alternativas de inserção crítico-social dos sujeitos na realidade em busca de sua transformação. Esse cenário é indutor de uma pedagogia que, baseada no diálogo, é um exercício crítico de liberdade.


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A Ação Dialógica

de Paulo Freire

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Paulo Freire, como instrumento humanizante, foi considerado “(…) um educador com uma prática crítica e fundamentada em ações éticas” (Rouanet, & Valerio, 2005, p. 10). Mostrou grande preocupação com questões do seu contexto socioeconómico, mostrando- se preocupado e comprometido com uma Ciência tipicamente voltada para uma sociedade mais justa. A maior parte da sua obra literária é a reprodução sinónima de “(…) discussão sobre educação abrange aspetos variados das ciências humanas, tais como a antropologia, sociologia, filosofia, economia política e história” (Rouanet, & Valerio, 2005, pp. 10 -11).

Os seus trabalhos são marcados por três influências referenciais: o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo, os quais constituíram um valioso contributo para um corpo teórico, ligado à emancipação humana, no campo da Educação.

O pedagogo brasileiro foi, igualmente, militante da alienação política, social e económica, e do reflexo destas na sociedade atual. Os seus esforços teórico- práticos objetivaram a práxis humanista, na qual a Educação deverá ser assumida como prática para não apenas partilhar conhecimento, mas igualmente para refletir e produzir conhecimentos e consciência crítica. Um dos contributos de Freire mais significativos foi o Círculo de Cultura, na década de 60, do século passado, no Brasil, após a implementação do seu método de alfabetização de jovens e adultos. Tal método tem como conduta principal partir da realidade do aluno através de sua linguagem própria e no diálogo reflexivo, para com os outros que o rodeiam e a realidade que o envolve, e com a qual constrói uma nova realidade social.

Freire defende, desde o início das suas diretrizes pedagogas, que o aluno é não apenas o sujeito como também o objeto de Educação. um interveniente, capaz de refletir e responder aos desafios da atualidade. Referenciando as contribuições de cariz construtivista, pautado na obra de Piaget, em relação à educação, é de salientar de que a aprendizagem não acontece de forma passiva pelo aluno. Cabe ao professor a tarefa de criar possibilidades de aprendizagem e promover situações problema que possam permitir o avanço cognitivo Outro aspeto que, durante muito tempo, fez parte do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes,

preconizado por Freire, é o facto do indivíduo ser reflexo do seu meio ambiente envolvente e familiar. Nesta linha de pensamento, e de acordo com Teruya (2010, p. 33), o indivíduo nasce uma tabula rasa, e as instituições como a família, igreja e escola, vão imprimindo as informações e “(…) a visão de mundo é transmitida de geração a geração, no sentido de preservar a tradição”.

Romper com a velha maneira de ensinar e aprender é, segundo Pizani e Oliveira (2015), um grande desafio, pois, na sociedade atual, a que apelidamos de informação, a multiplicidade de recursos existentes preconizam o incentivo à utilização de metodologias distintas das convencionais. “Uma vez que a escola tem um papel fundamental na construção da sociabilidade dos indivíduos, o que contribui para uma sociedade mais crítica, onde os atores sociais tenham a oportunidade de serem formadores de opinião.” (Pizani & Oliveira, 2015, p. 3).

Como já foi citado anteriormente, ao longo deste artigo, é justamente na sua obra de A Pedagogia do Oprimido (1987) que, ao criticar o ensino tradicional e convencional, Freire enfatiza a dialogicidade, no processo de aprendizagem. Chama a atenção para o papel significativo da palavra, na análise e aplicabilidade do diálogo. Há duas dimensões na palavra: ação e reflexão. Neste sentido, Freire reafirma que “(…) não há palavra verdadeira que não seja práxis (…)” (Freire, 1987, p. 77). Daí que utilizar o dom da palavra verdadeira, seja transformar o mundo (Rouanet, & Valerio, 2005).

Para Freire, poder pronunciar a palavra é um direito de todos os homens, mas esta só poderá ser utilizada pelo indivíduo, para com e pelos outros. Cada qual deve utilizar a sua palavra/linguagem, revestida das características do diálogo apontadas pela teoria freiriana. (Gasparin, 2010).

Desta forma, é-nos apresentada uma outra dinâmica no processo de ensino e aprendizagem, mas especialmente, na relação entre aprendente e mestre. Não se referencia apenas a transmissão de conteúdos, ou os contributos desta, mas o estabelecimento do diálogo, como processo de formação, mútua e permanente, o qual favorece uma análise crítica e a formação de consciência do indivíduo.

Por outras palavras, tal como diria Paulo Freire, “(…) ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho. Os homens se educam juntos, na transformação do mundo” (Freire, 1987, p. 68).


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Aprendizagem

Dialógica

A prática do diálogo, no processo de ensino e aprendizagem, é a abertura da relação entre os indivíduos, a viverem em sociedade. De acordo com o filósofo Mikhail Bakhtin (2011, p. 341), “(…) ser significa ser para com o outro e, através dele, para si.” Com base neste pensamento, o discurso permite a possibilidade de todos os intervenientes no processo educacional – professores e alunos – poderem participar neste processo de forma dinâmica. Todos colaboram e participam nesta troca de conhecimentos.

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Quando, no processo de ensino e aprendizagem, não são fundamentados o dialogismo e a alteridade, tende- se a empobrecer a troca de experiências diversas e de partilhas vivenciadas, entre professores e alunos.

Neste sentido, surge-nos o conceito de aprendizagem dialógica, resultante de muitos estudos e práticas de investigação no Centro Especial de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA), da Universidade de Barcelona. Outrora já mencionado por Martin Buber, na sua obra Eu e Tu (1923, cit. por Silva, 2020), em que o indivíduo somente poderá realizar-se de forma plena através de um verdadeiro comprometimento para com o seu próximo. Tal ocorrerá quando se efetivar uma relação de diálogo entre ambos, por meio da relação do Eu com o Tu.

Encontra-se presente na abordagem dialógica, e reporta-se à forma de conceber a aprendizagem, tendo por objetivo estudar as transformações sociais e culturais de uma sociedade “(…) e garantir uma educação de qualidade e igualitária para todas as pessoas frente aos desafios encontrados na sociedade atual.” (Gabassa et al, 2013, p. 35).

Tal conceito tem vindo a ser pesquisado e desenvolvido por meio de diversas investigações, leituras e debates, quer em Espanha (de onde é oriundo), quer do Brasil. Desde meados dos inícios do século atual (2002), no Brasil, a aprendizagem dialógica tem sido alvo de estudo do Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Como já frisado ao longo deste artigo, o objetivo da aprendizagem dialógica é a formação educativa, “(…) a partir dos princípios do diálogo, da comunicação e do consenso igualitário.” (Gabassa et al, 2013, p. 36). Conceito desenvolvido pelo CREA, tem por base o contributo teórico de Jürgen Habermas e de Paulo

Freire, que é o nosso alvo, para a redação deste artigo. A teoria da ação comunicativa, do primeiro autor, acrescida ao conceito de dialogicidade do segundo, dão suporte e reúnem os elementos teóricos necessários para o processo de ensino e aprendizagem, pois ambos compartilham a ideia de que é nos horizontes da comunicação humana, é que seja possível a superação da insensibilidade de muitos frente aos processos de dominação. Sendo a escola local privilegiado do debate democrático, as estruturas comunicativas que visam à formação da opinião podem reforçar a autonomia dos sujeitos, e enfrentar a vida social contemporânea. (Polli, 2018)

Ramon Flecha (1997), mentor do Projeto das Comunidades de Aprendizagem, apresenta-nos este conceito, por meio de sete princípios, que passaremos a explicar, de seguida.

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O primeiro princípio apontado por Flecha, em 1997, é o diálogo igualitário, o qual só é considerado quando se tem por base as diferentes contribuições em função da validade dos vários argumentos apresentados, ao invés da posição de poder de quem os realiza. Para o autor, tal dinâmica acontece, cada vez mais, na atual sociedade, visto que a seleção e o processamento das informações tornaram-se ponto inicial, para a sobrevivência. Nesse sentido, o diálogo consegue desenvolver essas capacidades, ou competências, como preferirmos chamar, de forma mais profunda, do que as formas mais convencionais e tradicionais de ensino. Tendo por base a teoria da ação comunicativa, de Habermas, Flecha destaca-nos neste autor, quatro diferentes tipos de ação, que ajuda a repensar as relações educativas. A saber, a ação teleológica, ou estratégica; a ação regulada por normas; a ação dramatúrgica; e, por último, a ação comunicativa. Faremos uma breve súmula de cada uma destas tipologias.

No caso da ação teleológica, são escolhidos os melhores meios para se conseguir atingir um fim. A linguagem, neste caso específico é utilizada como um desses meios. Na ação regulada por normas, Flecha (1997) caracteriza-a como aquela na qual as pessoas não agem enquanto atores solitários, mas sim, como membros de um grupo social, o qual atua de acordo com os valores incutidos nesse grupo. No 3º tipo de ação, na dramatúrgica, os intervenientes agem como atores, sendo o conceito generalizado o de autoencenação. Por fim, a ação comunicativa é uma interação, na qual os sujeitos intervenientes, capazes de linguagem e de ação próprias, estabelecem uma relação interpessoal com linguagem verbal ou não-

verbal, através de uma negociação, a linguagem ocupa lugar central como meio de entendimento. O consenso é estabelecido através dos melhores argumentos. A todo este processo dá-se o nome de diálogo igualitário. No que concerne ao segundo princípio apresentado por Flecha (1997) - Inteligência Cultural, todos os indivíduos têm a capacidade de participar num diálogo igualitário, mesmo que tal capacidade seja demonstrada de diferentes modos entre todos. A questão aqui prende-se pelo facto de, numa sociedade, os indivíduos com maior influência, quer positiva, quer negativa, tendem a subestimar as ideias de outrem. Face à multiplicidade de ideias existentes na realidade escolar de hoje em dia, visualizamos ideias subestimadas, face a outras que as sobrepõem. Neste sentido, a aprendizagem dialógica requer um conceito amplo, que contemple a pluralidade de dimensões da interação humana e se baseie no diálogo igualitário. Relativamente à transformação, novo princípio, e segundo Paulo Freire (2006), o ser humano é um ser de transformação e não de adaptação. Com isto queremos dizer, que, durante demasiado tempo, o que imperava na escola era a teoria da representação, a qual apenas reproduzia as desigualdades sentidas na escola e na sociedade. As teorias sociais que discutem este caráter dual da ação, ou seja, como reprodutora ou como transformadora, como se pode notar com os conceitos de sistema e mundo da vida, de Habermas, e de estrutura e agência humana, de Giddens, caminham no sentido dessa mesma compreensão.

No quarto princípio - dimensão instrumental - requer-se que todos os conhecimentos e habilidades são considerados necessários para se efetive essa aprendizagem dialógica. A atual sociedade de informação é caracterizada pelo uso de mecanismos e de ferramentas direcionadas às tecnologias de informação e comunicação. Mas, entre os homens, será essa a forma mais conveniente, ou mesmo social, de partilhar conhecimento? Onde fica a dialogicidade? Nesse sentido, Gabassa et al (2013, p. 38) afirmam

Por isso, a humanidade enfrenta hoje o desafio de recriar o sentido de sua existência nesse novo contexto e a educação escolar pode contribuir positivamente para essa perspetiva, promovendo a comunicação pessoa-pessoa. A escola deve ser um espaço para conversar e não para calar. Isso porque o sentido só ressurge quando as pessoas podem dirigir (as) suas próprias interações. Na verdade, o sentido de compartilhar palavras num grupo ajuda a recriar continuamente o sentido global da vida.

Habermas e Freire foram os inspiradores para este sexto princípio – a solidariedade, ao identificarem conceitos e intenções próximos, como a ideia do diálogo qualificado, de uma ética universalista possível, de uma emancipação humana. Neste sentido, quando falamos em práticas educativas que se proponham igualitárias e dialógicas, só podem fundamentar-se em conceções solidárias, pois acreditam que, ao invés do poder autoritário, poder-se-á apresentar a força das redes de solidariedade e lutar coletivamente por uma sociedade mais justa e democrática.

Por fim, no que concerne à igualdade de diferenças, outra das diretrizes freirianas, a aprendizagem dialógica orienta-se segundo o respeito pela diferença, de modo equitativo, pois a igualdade, no real sentido, inclui o direito que cada pessoa tem de ser e viver de forma diferente. Paulo Freire (2006) chama a essa orientação de “unidade na diversidade”, destacando que, embora diferentes, os grupos que são excluídos da sociedade, ressentem-se, por isso podem ser diferentes, devendo ser respeitados na diversidade. A partir desse princípio, é importante ressaltar que quanto maior a diversidade nas interações, mais diversificada e rica será a aprendizagem. A linguagem como forma de interação, e.g., uma perspetiva dialógica da aprendizagem.

A aprendizagem dialógica apresenta-se como recurso imprescindível no trabalho de sala de aula, como para as relações de organização e funcionamento da escola, de forma generalizada, para maximizar a aprendizagem, para todos os estudantes e participantes de uma comunidade educativa.


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A aplicabilidade

da dialogicidade nas Comunidades de Aprendizagem

Comunidades de Aprendizagem é um projeto criado pelo CREA, da Universidade de Barcelona, baseado num conjunto de Ações Educativas de Sucesso (AES), que pretendem visar a transformação social e educacional.

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Este modelo educativo está de acordo com as teorias científicas a nível internacional que destacam dois fatores-chave para a aprendizagem na sociedade atual: as interações e a participação da comunidade. Este processo envolve todos aqueles que, direta ou indiretamente, têm influência na aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes, incluindo docentes, familiares e outros agentes da comunidade educativa, tais como amigos, pessoas do bairro, membros de associações e organizações da comunidade, entre outros.

O projeto, com bases científicas, conta já atualmente com mais de 9.000 escolas, em todo o território nacional e internacional, que implementam Ações Educativas de Sucesso, ou estão mesmo constituintes de uma Comunidades de Aprendizagem. Contando já com 14 países da Europa e América Latina, a grande base foi oriunda em Espanha, passando, posteriormente, para o Brasil, devido aos pressupostos reivindicados por Paulo Freire.

Baseado nos sonhos de toda a comunidade educativa, através do diálogo e da ciência, este projeto transformador promove a melhoria das aprendizagens, a convivência e a coesão social das comunidades onde ele é implementado.

A sua base conceptual é apoiada pelas conclusões do Projeto INCLUD-ED, Strategies for Inclusion and Social Cohesion in Europe from Education, financiado pela Comissão Europeia, entre os anos de 2006-2011, coordenado pelo CREA e desenvolvido na Europa, com a participação de 14 países.

A investigação INCLUD-ED identificou seis Ações Educativas de Sucesso, baseadas em evidências que alcançam os melhores resultados a nível académico,

na coesão social e na coexistência em muitos contextos diferentes. São, portanto, universais e transferíveis.

A essência de todo este projeto das Comunidades de Aprendizagem é garantir uma aprendizagem equitativa, para todas as crianças, proporcionando igualdade de oportunidades, criando as condições para alcançar os melhores resultados para todos, através do aumento das expetativas, envolvendo as famílias e a comunidade em atividades educativas e de promoção de interações.

Segundo o site oficial das Comunidades de Aprendizagem, o projeto pretende alcançar: Melhores resultados académicos para todos os estudantes.

Aumento da confiança e motivação para a aprendizagem. Melhor coexistência e melhores atitudes de solidariedade social.

Mais significado e qualidade de aprendizagem para toda a comunidade.

Participação real das famílias e de todos os agentes sociais na escola.

In https://comunidadesaprendizagem.dge. mec.pt/pt/apresentacao/sobre-comunidades-de- aprendizagem


Neste sentido, com o apresentado anteriormente, poderemos dizer que a partir da aprendizagem dialógica, acrescida da participação educativa da Comunidade e de práticas inclusivas, queremos atingir uma Educação de êxito para todas as crianças e jovens. Pretende-se, de igual forma, eficiência, equidade e coesão social.


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Considerações

Finais

A Educação, quando bem direcionada e dinamizada, é expressão máxima num processo para a igualdade de oportunidades e para a democracia no ensino. Des- ta forma, torna-se fundamental que se viabilizem as possibilidades e as condições necessárias a que todos, crianças e jovens, consigam ter a oportunidade de ter o acesso e a plena participação a uma Educação de qualidade.

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Desta forma, toda a obra de Paulo Freire pode contri- buir para a construção de uma teoria ético-crítico da Educação, que venha a possibilitar a conscientização plena de formar cidadãos para um futuro, em plena harmonia consigo próprio e para com o Outro. A sua obra é resultado das suas experiências como sujeito, pois Freire observava e vivenciava cada detalhe como fonte para aprendizagem (Santos et al., 2021).

A Metodologia Comunicativa, ou a dialogicidade, como preferirmos, elaborada pelo Centro Especial em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA) e tendo como base a aprendizagem dialógica, e utilizada em pesquisas desde a década de 1990 na Europa, e a partir de 2001, no Brasil, compreende, na realidade, um conjunto teórico-metodológico.

Partindo das diretrizes de Paulo Freire, a base da aprendizagem dialógica reconhece que, todos tendem a enriquecer com a interação social existente através do diálogo. Neste sentido, a democratização das esco- las, no sentido de serem espaços acolhedores de pú- blicos heterogéneos, persiste em garantir a aprendi- zagem dos conhecimentos escolares, embora, ainda possa ser um caminho idealizado, para o cumprimen- to de tal.

Ainda assim, a Educação e todo o trabalho no con- texto escolar, realizado e a realizar, têm muitos ganhos a partir da perspetiva da aprendizagem dia- lógica. As Comunidades de Aprendizagem são exem- plos disso, onde se estabelece a ação comunicativa, entre todos os intervenientes nas escolas, em bus- ca de acordos e entendimentos em torno daquilo que almejam de melhor para uma dada realidade.


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Referências


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