POTENCIALIDADES E A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA: UM OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO ESPECIAL PARA

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

ALÉM DA CONDIÇÃO DE DEFICIÊNCIA E O PAPEL DO DOCENTE NO PROCESSO DE

INCLUSÃO

Caroline Giolo-Melo

1

Universidade de São Paulo (USP)


image

image

Resumo:


O presente artigo refere-se a um ensaio sobre a educação especial e o papel do educador no processo de inclusão, com o intuito de reflexão sobre a prática docente por meio do referencial teórico “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”, obra clássica do autor Paulo Freire, patrono da Educação Brasileira. Inicialmente, apresentou-se um panorama histórico sobre as diferentes perspetivas da deficiência e a educação especial, também a história da educação especial no Brasil. A seguir, realizou-se um diálogo entre a Pedagogia da Autonomia e o papel do docente no processo de inclusão. Diante disso, destaca-se a necessidade de uma prática docente com enfoque nas potencialidades e não nas limitações dos alunos com necessidades educacionais especiais.


Palavras-chave:

Educação Especial; Inclusão; Necessidades Educacio- nais Especiais; Pedagogia da Autonomia.


image


2

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

DATA DE SUBMISSÃO: 2023/01/30 DATA DE ACEITAÇÃO: 2023/07/06 DOI: 10.25767/SE.V32I1.29432

image

Abstract:


This article refers to an essay on special education and the role of the educator in the inclusion process, with the aim of reflecting on teaching practice through the theoretical framework “Pedagogy of Autonomy: necessary knowledge for educational practice”, classic book by the author Paulo Freire, Patron of Brazilian Education. Initially, a historical overview was presented on the different perspectives of disability and special education, also the history of special education in Brazil. Next, there was a dialogue between the Pedagogy of Autonomy and the role of the teacher in the inclusion process. In view of this, the need for a teaching practice focused on the potential and not on the limitations of students with special educational needs is highlighted.


Keywords:

Special Education; Inclusion; Special Educational Needs; Autonomy Pedagogy.


image


image

Introdução

Na história da humanidade observa-se que, em todas as culturas, a sociedade atravessou diversas fases no que se refere ao tratamento destinado às pessoas com deficiência. Inicialmente foram praticados atos de eli- minação, castigos e a exclusão social dessas pessoas, pois suas condições físicas, sensoriais ou mentais atí- picas não eram consideradas condizentes com as dos membros pertencentes à maioria da população. No entanto, ao longo da história, constata-se diversas mudanças nos tratamentos dispensados às pessoas com deficiência, partindo das ações de caridade, à institucionalização das medidas assistencialistas e ao reconhecimento das pessoas com deficiência como ci- dadãos de direito. Entretanto, a conquista dos direitos desse segmento da sociedade tem sido motivo de luta constante (Pereira & Saraiva, 2017).

Embora o Brasil seja um país que possui uma das le- gislações mais avançadas no que diz respeito aos di- reitos das pessoas com deficiência, a sua efetivação ainda deixa a desejar, pois a falta de fiscalização e pu- nições induz a um sentimento de ineficiência das leis e demonstra a falta de interesse do poder público e das instituições privadas em se fazer cumprir o que deter- mina a lei (Pereira & Saraiva, 2017).

Assim, um dos principais pontos a ser observado na educação especial é a necessidade de que esta seja ver- dadeiramente inclusiva, a fim de possibilitar a evo- lução escolar e o desenvolvimento da autonomia do aluno, dessa forma o docente configura-se como pri- mordial nesse processo.

Nessa perspectiva, o presente artigo refere-se a um ensaio que tem como objetivos: apresentar um pano- rama histórico sobre as diferentes perspetivas da de- ficiência e a educação especial, apresentar a história da educação especial no Brasil e realizar uma reflexão sobre o papel do docente no processo de inclusão, por meio de um diálogo com uma obra clássica da educa- ção brasileira.

Para refletir sobre o papel do educador no processo de

inclusão, utilizou-se como referencial teórico a obra: “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prá- tica educativa”, do autor Paulo Freire, Patrono da Edu- cação Brasileira e um dos educadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, sendo que a escolha do referencial ocorreu devido à obra propor uma peda- gogia fundamentada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando.


image

Panorama histórico sobre as diferentes perspetivas da deficiência e a educação especial

No decorrer da história da humanidade a deficiência foi entendida sob diferentes perspetivas. Na antigui- dade, pessoas com deficiência eram abandonadas ou sacrificadas, enquanto na Idade Média eram vistas como castigo merecido aos pais, sendo resultado de ação demoníaca. A excecionalidade era vista sob o enfoque patológico de que o indivíduo era um eterno doente, incapaz, inválido e sem condições de sobrevi- ver por capacidade própria. Assim, apenas na Idade Contemporânea iniciou-se a preocupação com essa população e a proliferação de discursos em prol das di- ferenças, todavia a segregação ainda ocorria.

Com o advento do Cristianismo, houve uma mudan- ça nessa realidade e a pessoa com deficiência passou a ser vista como “criatura de Deus”, possuidora de alma e não merecedora de castigo, mas de cuidados. Atitu- des de extermínio não foram mais aceitas e os cuida- dos com essas pessoas tornaram-se assegurados pela família e a igreja, mesmo que tais cuidados não ga- rantissem a integração do deficiente na sociedade de forma geral (Pereira & Saraiva, 2017).

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

Nesse momento, em que a ética cristã reprime a anti- ga tendência de livrar-se do deficiente, surge a neces- sidade de que este seja mantido e cuidado. Em nome da caridade a rejeição transforma-se em confinamen- to, pois o asilo que garante teto e alimento também esconde e isola (Pessotti, 1984).

Todavia, de acordo com Pereira e Saraiva (2017), du- rante a Idade Média, o período entre os séculos V e XV foi de grande crescimento urbano, favorecendo o apa- recimento de muitas doenças epidêmicas, como: han- seníase (lepra), peste bubônica, difteria e influenza, também de outros males, como problemas mentais e malformações congênitas. Acreditava-se que esses males resultavam de maldições, feitiços e bruxarias, atuação de maus espíritos, do próprio demônio ou si-

nais da ira celeste (castigos de Deus). A prática de sa- crificar as crianças que nasciam com membros disfor- mes regressou e as poucas crianças que conseguiam sobreviver cresciam separadas das demais e eram ridi- cularizadas ou desprezadas.

Entre os séculos XV e XVII, o período conhecido como Renascimento foi marcado por grandes descobertas da medicina, pela filosofia humanista e pelos primeiros direitos dos homens perante a sociedade. Embora con- vivendo com os problemas da pobreza e da marginali- zação dos deficientes, a Renascença surgiu no mundo para livrar o homem da ignorância e da superstição. Desse modo, começaram a serem dados os primeiros passos no atendimento às pessoas com deficiência, en- tretanto, apesar de ter sido uma época revolucionária sob muitos aspectos, o Renascimento não conseguiu romper com os preconceitos (Pereira & Saraiva, 2017). “Só a partir do século XIX a sociedade começa a reco- nhecer a sua responsabilidade para com as pessoas com deficiências, principalmente no que se refere a medidas de assistência e proteção voltadas para os grupos minoritários e marginalizados” (Pereira & Sa- raiva, 2017, p. 174).

Na Europa surgem os locais específicos para proteção e assistência a velhos, cegos, surdos e mutilados de guerra. No entanto, no início do século XX, ocorreu o surgimento do regime totalitarista da Alemanha nazista, que desen- volveu o programa de Eugenismo, “vida que não merecia ser vivida”, ocasionando o assassinato de cerca de 275.000 indivíduos, dentre eles pessoas com deficiências físicas, mentais, doentes incuráveis ou com idade avançada (Pe- reira & Saraiva, 2017).

No século XX também ocorreram a Primeira Guerra Mundial (de 1914 a 1918) e a Segunda Guerra Mundial (de 1939 a 1945).


No período entre Guerras é característica comum nos países europeus – Grã-Bretanha e França, principal- mente, e nos EUA – o desenvolvimento de programas, centros de treinamento e assistência para veteranos de guerra. Na Inglaterra, por exemplo, já em 1919 foi criada a Comissão Central da Grã-Bretanha para o Cuidado do Deficiente. Depois da II Guerra, esse mo- vimento se intensificou no bojo das mudanças promo- vidas nas políticas públicas pelo Welfare State. Dado o elevado contingente de amputados, cegos e outras deficiências físicas (e transtornos mentais) o tema ganha relevância política no interior dos países e in- ternacionalmente, no âmbito da Organização das Na- ções Unidas (ONU). A “epopéia” das pessoas com defi- ciência passaria a ser objeto do debate público e ações

políticas, assim como outras questões de relevância social, embora em ritmos distintos de um país para o outro (Garcia, 2010, p. 22).


Nesse sentido, a partir do desenvolvimento das leis do trabalho, surge uma maior preocupação e interes- se quanto aos direitos das pessoas com deficiência, sendo aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 09 de dezembro de 1975, a “Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência”, ga- rantindo-lhes os direitos inerentes à igualdade huma- na (art. 3°). Em 1981 foi proclamado pelas Nações Uni- das o “International Year of Disabled Persons” (Ano In- ternacional das Pessoas com Deficiência) (Costa, 2008; Figueira, 2008; Pereira & Saraiva, 2017).

Em 1982 a ONU aprovou o programa de “Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência” (Resolução nº 37/52), que tem como princípio básico a igualdade de oportu- nidades, garantindo a todos os deficientes o acesso ao sistema geral da sociedade, como: meio físico e cultu- ral, habitação, transporte, serviços sociais e de saúde, oportunidades de educação e de trabalho, vida cultural e social, e, inclusive, instalações esportivas e de lazer. Na sequencia, a Assembleia Geral da ONU, através da Resolução nº 37/52, proclamou a “United Nations De- cade of Disabled Persons” (Década das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência), compreendendo os anos de 1983 a 1992 (Pereira & Saraiva, 2017).

Corroborando com esses avanços na legislação, em 1992, a ONU instituiu o dia 3 de dezembro como o Dia do Deficiente, e no dia 10 de junho de 1994, na Espa- nha, foi adotada em Assembleia Geral a resolução das Nações Unidas, denominada Declaração de Salaman- ca, que apresentava os procedimentos padrões para a equalização de oportunidades para pessoas com de- ficiência e destacava a preocupação com a educação especial, sendo considerada mundialmente como um dos mais importantes documentos que visam à inclu- são social (Pereira & Saraiva, 2017).

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

A Declaração de Salamanca enfatizou a educação in- tegradora, bem como, declarou que as escolas regu- lares com orientação inclusiva constituíam os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias e que alunos com deficiência deveriam ter acesso à escola regular.


image

Educação Especial no Brasil

De acordo com Bernardes (2010), no Brasil a educa- ção especial ocorreu em dois períodos: de 1854 a 1956 (com iniciativas oficiais, particulares e isoladas) e de 1957 a 1993 (com iniciativas oficiais e de âmbito nacional). Sendo que até a década de 50 quase não se falava em educação especial, mas na educação de deficientes.

Foi na década de 50 que começaram a surgir as primei- ras escolas especializadas e as classes especiais, nesse momento a educação especial se consolidava como um subsistema da educação comum. Trata-se de um perío- do no qual predominou a concepção científica da defi- ciência, acompanhada pela atitude social do assisten- cialismo presente na Idade Média e reproduzido pelas instituições filantrópicas de atendimento aos alunos com deficiência (Brasil, 2006).

Na década de 70 foram criadas as classes especiais e começou a ser observada a necessidade de integração social dos indivíduos que apresentavam deficiência, então se iniciou um movimento com objetivo de in- tegrá-los em ambientes escolares, registrando nesta época muitos avanços na conquista da igualdade e do exercício de direito, aumentou-se aos poucos a pressão toda comunidade envolvida para que o Es- tado reconhecesse cada vez mais a educação especial como responsabilidade e dever. Surgem programas de reabilitação global, incluindo a inserção profis- sional de pessoas com deficiência (Brasil, 2006).

Vale destacar que a trajetória de luta pela educação e pelos direitos como cidadãos deve-se ao determinan- te papel exercido pelas instituições particulares e de caráter filantrópico, as quais organizaram grandes movimentos pelos direitos das pessoas com deficiên- cia e trouxeram para o eixo das discussões os direitos sonegados ao longo do tempo, denunciando a discri- minação, o preconceito e a falta de programas educa- cionais básicos (Fumegalli, 2012).

Ainda na década de 70, com o surgimento da proposta de integração, os alunos com deficiência começaram a freqüentar as classes comuns, uma vez que o avanço dos estudos nas áreas de psicologia e pedagogia come- çou demonstrar as possibilidades educacionais desses alunos, com isso, predominava a atitude de educação/ reabilitação como um novo paradigma educacional. Todavia, coexistia também uma atitude de margina- lização por parte dos sistemas educacionais, que não

ofereciam as condições necessárias para que os alunos com deficiência alcançassem sucesso na escola regu- lar (Brasil, 2006).


É nessa década que também surgiu o conceito de «ne- cessidades educacionais especiais» no então chamado Relatório Warnock (1978) apresentado ao Parlamento do Reino Unido, pela Secretaria do Estado para Edu- cação e Ciência, Secretaria do Estado para a Escócia e a Secretaria do Estado para o País de Gales. Esse rela- tório, organizado pelo primeiro Comitê do Reino Uni- do, presidido por Mary Warnock, foi constituído para rever o atendimento aos deficientes. Os resultados evidenciaram que uma em cada cinco crianças apre- sentava necessidades educacionais especiais em al- gum período do seu percurso escolar, no entanto, não existe essa proporção de deficientes. Daí o surgimento do relatório com a proposta de adotar o conceito de ne- cessidades educacionais especiais (Brasil, 2006, p. 6).


Na sequência, corroborando com o programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, aprovado pela ONU em 1982, e a proclamação da Década das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência, que com- preendeu os anos de 1983 a 1992, na década de 80 surge o movimento de inclusão no Brasil.


No final da década de 80, surge o movimento de in- clusão que desafia qualquer situação de exclusão, tendo como base o princípio de igualdade de oportu- nidades nos sistemas sociais, incluindo a instituição escolar. Esse movimento mundial tem como precei- tos o direito de todos os alunos frequentarem a escola regular e a valorização da diversidade, de forma que as diferenças passam a ser parte do estatuto da ins- tituição e todas as formas de construção de aprendi- zagem sejam consideradas no espaço escolar (Rodri- guies & Ferreira, 2016, p. 4).


S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

Nessa perspectiva, cabe mencionar que ocorreram muitos avanços na conquista de igualdade e do exer- cício de direito, por meio de marcos legais nacionais e internacionais que fortaleceram a criação da Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Edu- cação Inclusiva, em 2008.

Assim, vários fatores contribuíram para a efetivação do atendimento às pessoas com deficiência na rede regular de ensino, reafirmando que a educação é um direito de todos e dever do Estado, sendo a Declaração de Salamanca uma das principais influências na ela- boração dessa Política, a qual “acompanha os avanços do conhecimento e das lutas sociais, visando consti- tuir políticas públicas promotoras de uma educação de

qualidade para todos os estudantes” (Brasil, 2008, p. 1). A Política Nacional da Educação Especial na Perspec- tiva da Educação Inclusiva estabelece que a educação especial seja uma modalidade de ensino que se refere à educação básica e ao ensino superior, também define quem são os alunos atendidos pela educação especial: alunos com deficiência, transtornos globais do desen- volvimento e altas habilidades/superdotação.

No entanto, em 30 de setembro de 2020, foi publicado o decreto nº 10.502 que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Apren- dizado ao Longo da Vida (Brasil, 2020a), considerado por vários profissionais e acadêmicos da área como um retrocesso, uma vez o decreto previa a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições especializadas, o que foi entendido como uma forma de segregação, no entanto, em dezembro do mesmo ano este foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma ação de inconstitucionalida- de, via decreto legislativo nº 437 (Brasil, 2020b).

De acordo com a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID (2020), dispositivos constitucionais e legais foram identificados como vio- lados pelo decreto nº 10.502, assim como o rompimen- to com os compromissos internacionais assumidos por ocasião da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por exemplo, fere o princípio da progressividade do direito ou o princípio do não re- trocesso, pois embora nomine a política de “equitativa” e “inclusiva”, ela não está assentada na educação inclu- siva como a anterior Política Nacional de Educação Es- pecial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, já sedimentada nos Estados e Municípios brasileiros nesse momento, violando o direito de alunos com deficiência conviverem com alunos sem deficiência, em todos os ní- veis de ensino e pelo tempo que perdurasse

Para finalizar o histórico da Educação Especial no Brasil, também cabe ressaltar como marco legal na educação inclusiva, segundo Rodriguies & Ferreira (2016):


tuita da educação especial em estabelecimentos públicos de ensino, considerando crime a recusa de alunos com deficiência em estabelecimentos de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado.


Considera-se que a Educação Inclusiva é um dos cami- nhos possíveis para que países marcados por desigual- dades sociais enfrentem problemas de exclusão social e educacional, por meio das mudanças sugeridas a partir da inclusão de alunos com necessidades educa- cionais especiais no sistema regular de ensino. O res- peito à diversidade é um dos pilares básicos da Educa- ção Inclusiva que se converte em alternativa para que os sistemas educacionais rompam, definitivamente, com as diferentes formas de exclusão educacional (Brasil, 2006, pp. 8-9).


S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

No entanto, estudiosos da educação inclusiva ressal- tam que, para viabilizar as estratégias transformado- ras e concretizar as ações que o contexto de cada ins- tituição educacional exige, é preciso vontade política dos dirigentes, recursos econômicos e competência dos sistemas educacionais. A conquista dessas con- dições passa necessariamente pela elaboração de um projeto educacional coletivo, com a participação de to- dos os integrantes da escola. Esse projeto pressupõe, primordialmente, a participação de educadores com- prometidos com uma prática educacional orientada por concepções otimistas sobre o potencial educativo de todos os alunos, principalmente dos alunos com necessidades educacionais especiais. Todavia, para que isso ocorra, também é necessária uma formação docente que ofereça competência técnica e compro- misso profissional, fato que demonstra a importância de articular políticas de inclusão com políticas de for- mação docente (Brasil, 2006).


image

Pedagogia da Autonomia e o papel do docente no processo de inclusão

A inclusão por meio da educação especial possibilita estimular a autonomia do aluno, a fim de formar ci- dadãos mais autônomos, uma vez que:


Qualquer uma das esferas de exercício da cidadania necessita de conhecimentos e habilidades para o seu exercício, porque, por exemplo, no que tange aos di- reitos políticos, é necessário aprender o funciona- mento dos sistemas de poder, habilidades participa- tivas ativas, e exercitar atitudes inerentes a essa esfe- ra; o mesmo se aplica aos outros direitos. Todos esses elementos, na medida em que compõem um saber construído culturalmente ao longo do tempo, têm, na escola, uma instituição privilegiada para a sua apro- priação, aprofundamento e evolução (Nardi & Camar- go, 2007, p. 14).


Nesse sentido, o docente tem um importante papel como facilitador no processo ensino-aprendizagem e na evolução constante dos alunos, ressaltando-se que na sua prática o enfoque deve ser nas potencialidades e não nas limitações. Sendo primordial destacar que todos os alunos podem apresentar necessidades edu- cacionais especiais, independente de possuir alguma deficiência ou não, mas em ambos os casos, deve-se focar nas possibilidades e não nas dificuldades. As- sim, é preciso oferecer um ensino que contemple as diferenças e necessidades de cada aluno, bem como criar novos caminhos ou recursos para que todos pos- sam aprender e se desenvolver.

Para refletir sobre o papel do docente no processo de inclusão na educação especial, utilizou-se como refe- rencial teórico a obra clássica: “Pedagogia da Autono- mia: saberes necessários à prática educativa”, do au- tor Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira e um dos educadores mais notáveis na história da peda- gogia mundial. A obra foi escolhida por propor uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade

e à própria autonomia do educando, o que demanda do educador um exercício permanente. Em relação à autonomia, a autora do prefácio relata que:


Como os demais saberes, esta demanda do educador um exercício permanente. E a convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que as- sume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais do ato de conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do educando (Freire, 1996, p. 10).


Nessa perspetiva, pode-se dizer que a competência técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas, postura que ajuda construir um ambiente favorável à produção de conhecimento, no qual o medo do professor e o mito que se cria em torno da sua pessoa vão sendo desvalados. Dessa forma, é preciso aprender a ser coerente, pois de nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é imper- meável a mudanças (Freire, 1996).

De acordo com Paulo Freire (1996), a obra “Pedagogia da Autonomia” tem como temática central a questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prá- tica educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos, temática a que se incorpora a aná- lise de saberes fundamentais a essa prática. Sendo im- portante ressaltar que, ao trabalhar com a educação especial, essa reflexão sobre a prática deve ser cons- tante e inerente à função docente, uma vez que a cada momento surgem novos desafios e realidades na sala de aula, e o professor precisa repensar e adaptar seu planejamento e suas intervenções para que contem- plem todos os alunos.

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

“A pedagogia da autonomia nos apresenta elementos constitutivos da compreensão da prática docente en- quanto dimensão social da formação humana” (Frei- re, 1996, p. 11). O autor ainda adverte para a necessi- dade de os docentes assumirem uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização, também que formar significa muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas. Sub- linha a responsabilidade ética no exercício da tarefa docente, ao conotar expressivamente a prática educa- tiva enquanto prática formadora. No entanto, ao falar em ética, Freire refere-se à ética universal do ser hu- mano como:

A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na

perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação dis- criminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles. Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos (Freire, 1996, p. 16).


Em relação à ética, para Freire (1996) um professor pode até não aceitar a conceção pedagógica deste ou daquele autor e deve, inclusive, expor aos seus alunos as razões pelas quais se opõe a ele, o que não pode é mentir, ou seja, dizer inverdades em torno deles, pois o preparo científico do professor deve coincidir com sua retidão ética, pois seria considerada uma lástima qualquer descompasso entre ambos.

Ao pensar na natureza ética da prática educativa, en- quanto prática especificamente humana e sendo a ética absolutamente indispensável à convivência dos indivíduos, em relação à educação especial, é possível dialogar com o que o autor apresentou, uma vez que também é necessário ao docente inclusivo: “formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerên- cia, capacidade de viver e aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez” (Freire, 1996, pp. 16-17).

Para Paulo Freire, um dos saberes indispensáveis na formação é que o aluno, desde o princípio da sua expe- riência formadora, assuma-se “como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua constru- ção” (Freire, 1996, p. 22).

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

A presença do professor na sala de aula não é apenas para ensinar conhecimentos padronizados, mas para criar oportunidades de aprendizagem mediante a par- ticipação ativa dos alunos na construção do próprio conhecimento. Dessa forma, é possível estimular a autonomia desses mediante a utilização de metodolo- gias ativas de ensino-aprendizagem como, por exem- plo: aprendizagem baseada em problemas, aprendi- zagem baseada em equipe, aprendizagem baseada em projetos e aprendizagem baseada em jogos digitais. Também pode-se utilizar: problematização da reali- dade, aulas dialogadas, debates temáticos, dinâmicas em grupo, oficinas, leitura orientada, exposições, se-

minários, relato de experiência sobre alguma ativida- de, criar coletivamente regras para um jogo, apresen- tações culturais e utilização de recursos tecnológicos. Ainda se destaca que “quando entro em uma sala de aula devo estar aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não de transferir conhecimento” (Freire, 1996, p. 47). Além disso, para Paulo Freire (1996), ensinar exige: rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corpori- ficação das palavras pelo exemplo, risco, aceitação do novo, rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e as- sunção da identidade cultural.

Ao reforçar que ensinar não significa transferir conhe- cimento, o autor complementa que ensinar também exige: consciência do inacabamento, reconhecimento de ser condicionado, respeito à autonomia do ser do educando, bom senso, humildade, tolerância, luta em defesa dos direitos dos educadores, apreensão da realidade, alegria e esperança, convicção de que a mu- dança é possível e curiosidade. Lembrando-se que “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (Freire, 1996, p. 59).

Também ao destacar que ensinar é uma especificida- de humana, Paulo Freire focaliza que ensinar exige: segurança, competência profissional, generosidade, comprometimento, compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e au- toridade, tomada consciente de decisões, saber escu- tar, reconhecer que a educação é ideológica, disponi- bilidade para o diálogo e querer bem aos educandos. É necessário ressaltar que todas essas reflexões apre- sentadas pelo autor podem ser empregadas na educa- ção de forma geral, não são específicas para a educa- ção especial, embora sejam de extrema importância para que essa represente uma educação verdadeira- mente inclusiva, não só para alunos com alguma defi- ciência, mas para todos que apresentem necessidades educacionais especiais.

Da mesma forma, é preciso entender que cada alu- no é um indivíduo único com suas singularidades, e estimular sua autonomia significa fomentar suas potencialidades, ao mesmo tempo que estes também devem entender que existem diversidades e que estas necessitam ser acolhidas, respeitadas e valorizadas, uma vez que a educação tem o poder de extrapolar os muros da escola e refletir na sociedade, assim, ao desejar uma sociedade mais plural e democrática, de-

ve-se entender que a educação é um dos pilares mais importantes.


O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetivi- dade curiosa, inteligente, interferindo na objetivida- de com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultu- ra, da política, constato não para me adaptar mas para mudar (Freire, 1996, p. 77).


image


Considerações Finais

Na educação especial é imprescindível uma formação docente, desde a graduação, que possibilite contemplar a inclusão na qual o aluno não seja apenas integrado ao ensino regular e sim incluído, respeitando-se as suas singularidades. Assim, não significa apenas matricular o aluno com deficiência na escola, pois embora seja um importante espaço de sociabilidade, também é necessário que haja aproveitamento acadêmico, e para isso é fundamental que suas particularidades sejam consideradas. Desse modo, a escola e os docentes devem adaptar-se a estes e não ao contrário.

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

Pensar em uma educação que seja verdadeiramente inclusiva, significa entender que todo aluno é um indivíduo singular com suas necessidades, dificuldades e potencialidades, e que estas devem ser respeitadas no processo ensino-aprendizagem, da mesma forma que não se pode cogitar deficiência como sinônimo de limitações, uma vez que, qualquer aluno pode apresentar necessidades educacionais especiais, mesmo não possuindo uma deficiência.

Para finalizar, cabe ressaltar que a Educação Especial no Brasil obteve avanços significativos nas últimas décadas, no entanto, ainda existe um longo caminho a trilhar para que os alunos se sintam verdadeiramente incluídos, dessa forma, por hora há muito a ser discutido tanto na prática docente e projetos político- pedagógicos das escolas, quanto na imprescindibilidade da formação continuada e da criação de políticas públicas que realmente garantam a inclusão.

Da mesma forma, ao falar em educação especial no Brasil, não deve-se esquecer que também existem muitas outras questões que não se referem diretamente à prática docente, ou seja, que não estão na responsabilidade dos professores, mas que influenciam diretamente o seu trabalho, como: necessidade de mais investimento do poder público na educação, necessidade de criação de mais políticas públicas educacionais e avaliação das existentes, grande número de alunos por sala nas escolas públicas, turmas cheias e sem monitores ou estagiários para apoio, falta de recursos pedagógicos e tecnológicos, ausência de acessibilidade na estrutura física de muitas escolas, falta de apoio de algumas coordenações, diretorias ou da própria família do aluno, entre outros, mas que não foram contemplados no presente artigo devido à grande abrangência desses temas e por não ser o objetivo, sendo importante novas publicações específicas sobre eles.


image

Bibliografia


Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID. (2020). Nota técnica 01/2020 de 26 de outubro de 2020. Análise do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. https://ampid. org.br/site2020/wp-content/uploads/2020/10/ NotaTecnica_Educac%CC%A7aoInclusiva_ Ampid_2020_Final.pdf

Bernardes, A. O. (2010). Da integração à inclusão, novo paradigma. Revista Educação Pública, 10, (9), 1-5.https://educacaopublica.cecierj.edu. br/artigos/10/9/da-integracao-a-inclusao-novo- paradigma.

BRASIL. (2020a). Decreto nº 10.502 de 30 de setembro de 2020. Institui a Política nacional de educação especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2020/decreto/d10502.htm

BRASIL. (2020b). Decreto nº 437 de 02 de outubro de 2020. Susta, nos termos do art. 49, V, da Constituição Federal, a aplicação do Decreto Federal nº 10.502 de 30 de setembro de 2020, que cria a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=8896006&ts=16019393520 01&disposition=inline

Brasil. (1996). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l9394.htm.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. https:// www.udesc.br/arquivos/udesc/documentos/ Pol_tica_Nacional_de_Educa o_Especial_na_ Perspectiva_Inclusiva_15226887898922_7091.pdf.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. (2006). A inclusão escolar de alunos com necessidades educacionais especiais – deficiência física. http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/ deffisica.pdf.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ politicaeducespecial.pdf.

Breitenbach, F., Honnef, C., & Costas, F. (2016). Educação inclusiva: as implicações das

traduções e das interpretações da Declaração de Salamanca no Brasil. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 24, (91), 359-379. https://doi. org/10.1590/S0104-40362016000200005.

Costa, S.(2008) Dignidade humana e pessoa com deficiência: aspectos legais e trabalhistas. LTr.

Freire, P. (1996). Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. (36ª ed.). Paz e Terra. Figueira, E. (2008). Caminhando no silêncio: uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do

Brasil. Giz.

Fumegalli, R.(2012). Inclusão Escolar: o desafio de uma educação para todos. (Monografia de pós- graduação). Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. https:// bibliodigital. unijui.edu.br:8443/xmlui/ bitstream/handle/123456789/716/ritamonografia. pdf?sequence=1.

Garcia, V. (2010). Pessoas com deficiência e o mercado de trabalho: histórico e o contexto contemporâneo. Tese (Tese de doutorado em Desenvolvimento Econômico), Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas,Brasil. https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNICAMP30

_4ed1c8041a959f8ba0a7f66508dce9a4.

Nardi, E., & Camargo, R.(2007) O cidadão autônomo: desafios ao Brasil e às instituições educativas. VIDYA, 27, (1), 21-36. https://periodicos.ufn.edu. br/index.php/VIDYA/article/viewFile/347/321.

Pereira, J. , & Saraiva, J. (2017). Trajetória histórico social da população deficiente: da exclusão à inclusão social. SER Social, 19, (40), 168-185. https://doi.org/10.26512/ser_social.v19i40.14677.

Pessoti, I. (1984). Deficiência mental: da superstição à ciência, (4ªed.).Editora da Universidade de São Paulo.

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

Rodriguies, H., & Ferreira, C. (2016). Educação especial inclusiva: um estudo bibliográfico sobre o processo de inclusão de Alunos. Revista Científica Semana Acadêmica, 01, 1-11. https:// semanaacademica.org.br/system/files/artigos/ educacao_especial_inclusiva.pdf

UNESCO.(1994). Declaração de Salamanca: sobre princípios, política e práticas na área das necessidades educativas especiais.https:// unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139394