A CONSTRUÇÃO

ESCOLAR DE ALUNOS- PROBLEMAS E SEUS PROCESSOS DE ESTIGMATIZAÇÃO

Edson Soares Gomes

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rodrigo Rosistolato

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Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)



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Resumo:


Este artigo analisa a construção escolar de “alunos- problema”. Os dados resultam de 17 entrevistas em profundidade realizadas com orientadores educacionais de 16 escolas públicas em uma rede de ensino da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. O principal argumento é que os processos de construção de estudantes estigmatizados englobam a depreciação de aspectos comportamentais associados a 1) questões de gênero; 2) participação da família na escola e condições socioeconômicas; e 3) resultados escolares expressos na defasagem idade/série e baixo desempenho académico. A junção desses componentes resulta na identidade deteriorada de estudantes, o que está na base da produção de “alunos-problemas” enquanto sujeitos estigmatizados. Nesse jogo de interações, aqueles que são estigmatizados como “alunos-problemas” são impedidos de terem sucesso em suas trajetórias escolares. Não se trata somente de reprodução de desigualdades de origem, mas de produção de desigualdades no âmbito das escolas.


Palavras-chave:

Alunos-problemas; Estigma; Características depreciativas.


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DATA DE SUBMISSÃO: 2023/07/12 DATA DE ACEITAÇÃO: 2023/10/20 DOI: 10.25767/SE.V32I1.32028

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Abstract:


This article analyzes the school construction of troublemakers students. The data result from 17 in- depth interviews, with educational counselors from 16 public schools in the education system in Baixada Fluminense - Rio de Janeiro. The main argument is that the processes of construction of stigmatized students include processes of depreciation of behaviors associated with gender issues related to contextual aspects (family participation in school and socioeconomic conditions) and school results (age / grade gap and low academics results) A combination of these components results in a deteriorated student identity or that underlies the production of troublemakers students while stigmatized students.


Keywords:

Troublemakers students; Stigma; Derogatory characteristics.


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Introdução

Este artigo é fruto de uma investigação motivada pela identificação de um problema social no ambiente escolar. Os “alunos-problemas” são reconhecidos por professores, gestores, corpo técnico, discentes e sociedade em termos mais amplos1 por mobilizarem a comunidade escolar em torno dos desafios que colocam para a escola, em sua maioria, ligados à quebra de regras e à transposição dos limites existentes na convivência escolar. No Brasil, há literatura sobre o tema desde o início do século passado (Ramos, 1954), o que evidencia que essa é uma preocupação que não é recente, embora ainda permaneça provocando novas investigações não só no Brasil (Consorte, 1959; Rabuske, 2006; Santos, 2007; Brignol, 2016; Silva,

2014; Freitas, 2017; Souza, 2021), como também no

mundo (Payet, 1995; Ferguson, 2001; Willis, 2008, Moignard, 2015; Moignard & Rubi, 2013; Ramos, 2005).

Nosso objetivo é trabalhar com “alunos-problemas” como um “problema sociológico” (Lenoir 1984), ou seja, buscamos relativizar as visões correntes presentes na escola, para que seja possível pensar nas formas sociais que contribuem para que “alunos- problemas” se consolidem como tal.

Diferentes pesquisas, mesmo realizadas em tempos e lugares diversos e sob perspectivas teóricas distintas, endossam o entendimento do aluno-problema como uma questão social à medida que problematizam a relação entre estudantes de comportamento considerado disruptivo e suas respectivas escolas. Apontam para o comportamento desviante como um símbolo de estigma atravessado por questões étnico-raciais e de gênero (Payet, 1995; Ferguson, 2001; Moignard, 2015; Moignard & Rubi, 2013) e que se inscreve nas condições materiais e simbólicas de vida social (Willis, 2008), bem como na trajetória escolares marcadas pela aplicação de tecnologias que aprofundam as desigualdades de oportunidades educacionais (Ramos, 2005; Gomes, 2020).

Freitas (2017) dá sua colaboração ao deslocamento proposto neste artigo ao apresentar o “aluno- problema” como uma produção inerente a um modelo de educação, que convive com o desenho da homogeneidade e da simultaneidade em uma sociedade marcada por desigualdades sociais. Um problema ético que está relacionado ao fato de escolas, orientadas a partir de um currículo homogeneizador,


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1 – Esse argumento tem por base o trabalho de Gomes (2014; 2020).

tratar todos sob as mesmas regras, mesmo não sendo capazes de desconectar cada estudante da sua realidade social. Simultaneamente, todos, independentemente de estarem em vantagem ou em desvantagem, são submetidos aos mesmos critérios tendo que responder adequadamente no mesmo intervalo de tempo. Neste jogo, as desvantagens pessoais a que todos estão sujeitos, seja por uma dificuldade pontual ou até mesmo por uma deficiência física ou cognitiva, podem se somar às desvantagens sociais extremas como as vividas por famílias em situação de pobreza ou miséria.

A partir dessas contribuições, é possível apontar para os estigmas sociais nesse processo (Goffman, 2008), entendidos como elemento que contribui com a deterioração de identidades e, consequentemente, leva a processos de diferenciação e segregação (LINK e Phelan, 2001). Se pensarmos no contexto escolar, o estigma pode resultar na deterioração da identidade de estudantes e colocar sujeitos estigmatizados em situação de desvantagem social (Gomes, 2014).

A construção social dos “alunos-problemas” envolve, portanto, rótulos que são associados ao comportamento desviante – a maioria deles relacionados à indisciplina – no sentido empregado por Becker (2008). Trabalharemos com essa noção de forma articulada à ideia de estigma proposto por Goffman (2008), o que nos permitirá evidenciar o caráter relacional da produção do estigma a partir do desvio.

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Entende-se que os agentes escolares, especificamente orientadores educacionais, dedicam-se, dentre outras frentes de atuação, à mediação de conflitos no ambiente escolar e à atenção às relações interpessoais (Trota, 2012; Rangel, 2015), e por isso, são portadores de percepções sobre os “alunos- problemas”. Simultaneamente, realizam e orientam ações práticas relacionadas a esses meninos e meninas. Por isso, este artigo buscou a perspectiva desses profissionais para que fosse descrito de forma analítica os rótulos presentes no processo de construção escolar dos “alunos-problemas” enquanto sujeitos estigmatizados.


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Metodologia

Howard Becker (2007) propõe uma metodologia em que sugere que façamos uma “engenharia reversa” dos problemas sociais. Ele recomenda que pensemos nossas pesquisas como se estivéssemos tentando produzir o problema que estudamos, e que, para isso, devamos pensá-lo, metaforicamente, como se ele fosse produto de uma máquina. O esforço é pensar os componentes dessa máquina que seriam necessários para que seu produto – no caso, o problema social estudado – existisse. Obviamente, a pretensão não é a de produzir o determinado problema, mas descrever e compreender os processos que o produzem ou parte dele.

A alegoria proposta por Becker (2007) é convergente com a discussão realizada por Lenoir (1984). Ambos os autores entendem que o problema é construído socialmente. Essa construção envolve narrativas e ações práticas que passam a orientar as leituras individuais e coletivas sobre o fenômeno. A diferença entre os autores está localizada nos caminhos que propõem para a análise. Enquanto Becker (2007) apresenta um processo de construção abstrata com base na ideia de máquina, Lenoir (1998) aponta a necessidade de desconstrução e relativização do “problema social” para que ele se converta em “problema sociológico”. Não entendemos as duas propostas metodológicas como mutuamente excludentes. Ao contrário, embora pertençam a linhas teóricas diferentes, elas convergem quando buscam os processos de construção dos problemas sociais. Seguiremos, nesse artigo, caminhos convergentes para compreendermos o lugar dos “alunos-problema” nas interações escolares, considerando os estigmas associados à essa identidade desviante.

A investigação tem por base análise documental (relatórios disciplinares aos quais foi possível ter acesso) e um conjunto de 17 entrevistas com orientadores educacionais que trabalham em 16 escolas em uma rede municipal de ensino na Baixada Fluminense que, em 2017, mantinha o total de 43 escolas que atendiam a 18 mil estudantes. Desses estabelecimentos, nem todos contavam com a atuação de orientadores educacionais por terem menos de trezentos alunos (número usado como base para a lotação do orientador educacional na unidade) ou pelo município não dispor de profissionais suficientes para cobrir a demanda.

A entrevista em profundidade emerge como uma escolha metodológica qualitativa por favorecer o

acesso a informações, experiências e percepções das pessoas entrevistadas para analisá-las e apresentá- las de maneira estruturada (Demo, 2001). Dentre suas características, está o fato de ser um instrumento que favorece o diálogo ao permitir aos entrevistados que flexibilizem suas respostas e ao entrevistador que ajuste às perguntas em torno das questões que mobilizam a pesquisa. Seu objetivo está relacionado à busca por compreender uma situação ou a estrutura de um problema (Duarte, 2005).

Nesta pesquisa, o roteiro semiestruturado, construído para indicar os objetivos da entrevista, foi elaborado para que os orientadores falassem primeiramente sobre sua trajetória de formação, e sobre sua rotina cotidiana de trabalho, para depois abordar os principais problemas vivenciados por eles em suas escolas. Não havia perguntas diretas sobre “alunos-problemas”. Apesar de se partir da hipótese de que orientadores e orientadoras associariam às adversidades das escolas ao comportamento dos estudantes e, por isso,“alunos- problemas” surgiriam, o instrumento utilizado não conduzia inicialmente as entrevistas para um debate sobre estudantes, e sim sobre o que era classificado como problemas nas escolas.

Ao construírem narrativas sobre os problemas de suas escolas, os orientadores citaram 132 estudantes distribuídos entre 16 escolas (referenciadas por nomes fictícios) diferentes em uma mesma rede de ensino, dos quais 106 tiveram atributos depreciativos associados à sua identidade. Após destacarmos os símbolos de estigma, construímos quadros analíticos agregando todas as características depreciativas usando o princípio matemático da União Teórica de Conjuntos (U). Enquanto uma construção hipotética e racional, esses quadros permitem visualizar os símbolos que compõem, predominantemente, a identidade deteriorada de “alunos-problemas” considerando a compilação de pontos de vista produzidos em contextos diferentes.

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Ao final, tendo por base os quadros analíticos, as alegorias e análises propostas, são apresentados elementos do estigma social presentes nos processos de deterioração da identidade dos estudantes vistos como “problemáticos” no espaço escolar. Esse movimento permite que pensemos “alunos- problemas” de forma analítica, distanciando-nos de interpretações estigmatizantes sobre o tema.


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A construção escolar da identidade deteriorada a partir das narrativas de Orientadores Educacionais

Este estudo traz de volta a relação entre “aluno- problema” e Orientação Educacional não como uma tentativa de retornar a práticas ajustadoras de alunos que não se adequam (Maia e Garcia, 1995). Orientadores, apesar de hoje buscarem atuar em uma dimensão mais formativa e menos centrada em ideias disciplinadoras (Grinspun, 2012 Mendonça, 2013; Gomes, M., 2014; Pereira, Sousa & Medeiros Neta, 2014; Rangel, 2015; Martins & Barreiros, 2019), ainda se constituem como profissionais atentos aos problemas escolares das mais diversas ordens, inclusive àquelas inscritas nas esferas relacionais. Propomos fazer a discussão do “aluno-problema” a partir de concepção sociológica, com base no interacionismo simbólico (Joas, 1996), que busca distanciamento da ideia determinista do estudante indisciplinado como causa de problemas. No cerne da discussão, é colocado não o aluno indisciplinado, e sim o processo de construção social do seu estigma, que acaba depreciando sua identidade em função da forma como é classificado seu comportamento. Fala-se sobre “aluno-problema” sob a perspectiva da construção social do estigma a partir do comportamento tido, de forma relacional, como desviante.

Entendemos que os agentes escolares, destacadamente orientadores educacionais, são portadores de percepções sobre os alunos em geral e sobre os “alunos- problemas” em particular. Com base nelas, realizam e orientam ações práticas relacionadas ao corpo docente. Por isso, decidimos buscar a perspectiva desses profissionais para compreendermos os rótulos presentes no processo de construção escolar dos sujeitos estigmatizados.

De início, os orientadores eram perguntados sobre os principais problemas em suas escolas. Em seguida, eram provocados a falar sobre o entendimento que

tinham sobre as causas desses problemas, para, em um terceiro momento, apontarem para os sujeitos frequentemente envolvidos neles.

A partir das entrevistas, 106 estudantes ou ex- estudantes, sendo 83 referenciados pelos orientadores como meninos e 23, como meninas, foram citados como estando associados aos problemas escolares. Ao serem provocados a descrevem estes estudantes, todos tiveram aspectos comportamentais, familiares e escolares mencionados. Importante mencionar, que essa classificação de gênero foi sugerida pelos entrevistados em suas respostas às pergunta

Os quadros abaixo buscam sintetizar o conjunto dos aspectos mencionados de modo caracterizar quais características compõem a construção social do “aluno-problema” e da “aluna-problema”. Como algumas descrições fornecidas nas entrevistas pelos orientadores mantinham uma demarcação de gênero, atribuindo determinados comportamentos à meninos e outros, às meninas, optamos por subdividir os quadros fazendo jus a esta divisão. Os quadros referem-se a características comportamentais (Quadro 1); familiares (Quadro 2) e aspectos escolares (Quadro 3) de alunos e alunas relacionados aos problemas escolares

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Os termos que aparecem entre parênteses buscam retratar os pontos abordados nas narrativas produzidas pelos orientadores entrevistados.

Quadro 1 - Conjunto dos aspectos comportamentais depreciativos associados aos alunos e às alunas


Estudantes do sexo masculino

Estudantes do sexo feminino

  1. Desrespeito à autoridade dos adultos da escola (rebeldia, enfrentar professores e funcionários; tentar se impor, questionar ou se recusar a seguir comandos dos adultos; contestar comandos fazendo uso de deboches e xingar adultos).

  2. Agredir ou tentar agredir verbal ou fisicamente professores e demais funcionários, ou tentar intimidá-los.

  3. Não escutar o que os professora e o que os orientadores falam.

  4. Exercer “liderança negativa” (conquistar os colegas “para fazer besteira”; organizar o grupo como “gangues”; se apoiar no status que tem, desconcentrar os colegas e liderar a bagunça apresentando uma articulação maior que os adultos).

  5. Estar envolvido ou sob suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas: trabalhar na boca de fumo ou consumir, portar ou vender droga.

  6. Com frequência, agredir fisicamente e verbalmente os colegas (briga e provocações frequentes).

  7. Proferir ameaças aos colegas e tentar estabelecer regras no espaço (“ser o justiceiro”).

  8. Apresentar linguagem grosseira (xingamentos, falar alto e gritar).

  9. Não aceitar a contrariedade.

  10. Sair de sala para provocar colegas de outras turmas.

  11. Não assumir seus atos e negá-los quando questionado (“sonso”), ter um “olhar de desprovido de sentimento” e evitar estabelecer contato visual.

  12. Ser desinteressado (“aluno que não tá nem aí”, “que não quer nada”, não se esforçar “nem um pouco” para fazer os trabalhos; Não participar e não realizar as atividades propostas, bater papo o tempo todo na sala).

  13. Alto absenteísmo (ir pra a escola e não entrar na sala, ficar passeando pelos corredores ou ir embora sem autorização – “fugir” da escola).

  14. Depredar o espaço escolar (pichar a escola, quebrar janelas, atirar comida para o alto).

  15. Falta de motivação, demonstrando desinteresse com os estudos e dispersão (“ficar viajando”, “ficar enrolando sem copiar”, “ir para a escola porque os pais obrigam”, ter dúvidas e não perguntar).

  16. Confrontar as pessoas com maior autoridade na escola (“atirar uma bomba” depois de ser advertido).

  17. Agir de forma desrespeitosa com meninas (“Passar a mão”).

  18. Intimidar colegas menores.

  19. Furtar ou roubar objetos fora e dentro da escola para comprar drogas.

  20. Não ter bons hábitos de higiene (ir sujo para a escola, não cortar o cabelo).

  1. Sexualidade exacerbada (querer falar de namorado, fazer carta de cunhos sexuais, paquerar homem o tempo todo; passar a mão em menino e menina, beijar a boca de vários meninos, se esfregar nos meninos pequenos, oferecer-se aos colegas e adultos da escola).

  2. Ficar grávida e não comunicar à escola.

  3. Alto absenteísmo.

  4. Não se demonstrar abalada por ter perdido o bebê.

  5. Carência afetiva (“se cortar para chamar a atenção”).

  6. Mentir.

  7. Crer que todos os ao redor têm interesse afetivo ou sexual nelas.

  8. Envolver-se com prostituição.

  9. Se vestir de forma vulgar; usar roupas inapropriadas.

  10. Desrespeitar a autoridade dos adultos da escola (deboche, fazer cara de desafio, jogar o cabelo, fazer caras e bocas, virar o ombro,“ser abusada”, fazer gracinha” com os adultos, professor mandar entrar e não entrar).

  11. Agredir ou tentar agredir verbalmente professores e demais funcionários (gritos, xingamentos, proferir ameaças a professores).

  12. Ignorar (não estar nem aí) ao que professores e orientadores falam, ser arredia (não querer ficar perto de ninguém).

  13. Exercer “liderança negativa” (ser pivô da confusão, ser pivô de brigas entre grupos).

  14. Estar envolvido com o tráfico de drogas (dizer que quer ser a primeira dama do tráfico, namorar o chefe do tráfico, engravidar do “cara da boca”).

  15. Ir ao baile à noite e frequentar a escola sonolenta, fazer uso de bebidas alcoólicas.

  16. Agredir fisicamente e verbalmente outras meninas (chegar a machucar um colega, se envolver em brigas).

  17. Falar alto.

  18. Enfrentar os meninos (“partir pra cima dos meninos”, falar que vai “dar porrada nas colegas”).

  19. Ser desinteressado (“fica fora de sala de aula”, que “não quer nada”. Não participar e não realizar as atividades propostas, “querer bater papo” o tempo todo na sala, copiar atividade dos colegas, não realizar as atividades em sala de aula).

  20. Intimidar (amedrontar) colegas menores, coagi-los no banheiro.

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Fonte: elaboração própria com base nas entrevistas em profundidade realizadas


O Quadro 1 concentra as características comporta- mentais depreciativas destacadas pelos orientadores e orientadoras educacionais. Foram identificados 20 aspectos comportamentais associados à identidade de alunos e 20 associados às alunas. Ambos, meninos e meninas, foram vinculados a comportamentos de desrespeito, falta de escuta aos adultos, falar alto, in- timidações a colegas menores, agressão a servidores e a alunos, absenteísmo, desinteresse e liderança “nega- tiva”. Distanciam-se quanto aos demais comportamen-

tos depreciativos. Enquanto os alunos têm associados à sua identidade aspectos que aprofundam a percepção do comportamento violento (confrontar as maiores au- toridades da escola, cometer furtos, envolver-se com o tráfico, fazer ameaças, depredação do espaço escolar, não assumir seus atos, não aceitar a contrariedade, não ter bons hábitos de higiene, assediar as meninas, xingar), alunas foram associadas a comportamentos predominantemente relacionados à sexualidade e afe- tividade (sexualidade exacerbada, não comunicar gra-

videz à escola, não demonstrar-se abalada por ter per- dido um bebê, carência afetiva, prostituição, namorar com traficantes, vestir-se de forma vulgar, ir ao baile, mentir, enfrentar os meninos).

Embora alunos e alunas tenham aspectos comporta- mentais depreciativos em comum, as diferenças entre eles mostram que meninos e meninas se distanciam quanto à percepção do comportamento compreendido como um problema. Há um demarcador de gênero na interpretação de quais comportamentos são deprecia- tivos às alunas e quais o são para os alunos. A divisão desse quadro não significa, portanto, que alunos e alu- nas estejam em total oposição. Embora a maioria dos

aspectos depreciativos apareçam associados a apenas um gênero, meninos e meninas compartilhavam al- guns atributos depreciativos. O mesmo não foi notado ao se sistematizar as características familiares e esco- lares. Como evidência Carvalho (2001), as opiniões do- centes sobre masculinidade e feminilidade interferem no que é mais enfatizado no comportamento manifesto em meninos e meninas.

No Quadro 2, é possível observar como os aspectos fami- liares dos estudantes emergem associados aos proble- mas escolares. Como os descritores foram, em grande parte, comuns aos meninos e às meninas, compreen- demos não ser necessária a demarcação de gênero.


Quadro 2: conjunto dos aspectos familiares depreciativos associados aos alunos e às alunas


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Estudantes

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  1. Familiar que tenha sido preso: pai ou mãe presidiários ou irmão cumprindo medida socioeducativa.

  2. Ausência da mãe na escola; não ter um responsável que responda às chamadas da escola.

  3. Família negligente com os cuidados (viver solto pela rua, sujo, não cortar os cabelos, esquecer o filho na escola e permitir que ele saia de casa e não volte, ou ser criado pela avó que acoberta tudo, morar com o namorado), mãe de idade elevada.

  4. Abandono materno ou paterno: rejeição do pai ou falta de tempo da mãe, histórico de ser abrigado.

  5. A família não ter condições de amparar (a mãe “não ter noção” para conseguir orientar e ser conivente com o comportamento inadequado; mãe ser uma pessoa deplorável por apresentar um comportamento reprimível como o da filha; avó “louca de pedra” e querer viver a vida dela).

  6. Mãe não impõe limites, sem referência de autoridade, mãe acompanhar filho no “baile”.

  7. Envolvimento de responsáveis com drogas (mãe usuária de drogas; pai ou mãe com problemas com álcool).

  8. Responsáveis que confrontam as queixas feitas pela da escola (“proteger”, “passar a mão por cima”).

  9. Ter presenciado ou vivido violência na unidade doméstica (ver o irmão ser assassinado, ter sido abusado sexualmente, mãe esfaqueada, presenciar brigas violentas em casa).

  10. Morar em região violenta: (Conselho Tutelar se recusar a ir no local de moradia devido à violência, morar no “buraco quente”).

  11. Familiar com envolvimento com a criminalidade (pai bandido, tio ser um dos bandidos da área, mãe envolvida com o tráfico internacional de drogas, irmão “no morro” trabalhando no tráfico de drogas).

  12. Responsáveis ausentes que não comparecem à escola; não ter um responsável que responda às chamadas na escola.

  13. Modificações frequentes na unidade doméstica (morar com diversos parentes; se mudar com frequência ou ter muitos irmãos de pais diferentes).

  14. Responsáveis que agridem os filhos (“ser incapaz de manter um diálogo”), pai ser uma pessoa extremamente agressiva.

  15. Filhos serem carentes de afeto.

  16. Mãe não levar adiante encaminhamentos feito pela escola a especialistas.

  17. Pais em processo de separação ou separados.

  18. Pobreza (Trabalhar em Kombi para ajudar a família).

  19. Ser de uma família que já tenha tido problemas na escola.


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    Fonte: elaboração própria com base nas entrevistas em profundidade realizadas.


    Nota-se que os aspectos familiares depreciativos (Qua- dro 2) são atravessados pela dimensão social, muito em parte associados à pobreza e à violência urbana (envolvimento com a criminalidade) e doméstica (agressões e abandono). É possível observar também aspectos relacionados à configuração familiar e con- vivência doméstica (separação de pais, carência afeti- va), bem como aspectos da participação na escola (não levar adiante encaminhamento da escola ou não com-

    parecer quando solicitados).

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    Parte desses aspectos encontra seu lastro não só na per- cepção dos Orientadores e Orientadoras Educacionais participantes na pesquisa, mas no trabalho que reali- zam no sentido de se buscar caracterizar e compreen- der o contexto social dos estudantes atendidos na es- cola. As características familiares mencionadas com- põem, para além de aspectos depreciativos acionados na escola, a descrição de condições de vida de crianças

    e adolescentes em situação de vulnerabilidade social marcada, sobretudo pela pobreza e pela violência ur- bana. A cidade em que foi realizada a pesquisa está entre os 10 municípios mais pobres do estado do Rio de Janeiro em nível de pobreza absoluta da população. Quanto aos aspectos escolares (Quadro 3), alunos e alunas estigmatizados têm, predominantemente, destacadas como características depreciativas as de- fasagens de aprendizagem e aproveitamento escolar; a defasagem entre idade e série, a baixa frequência

    (entendida como um resultado e não como comporta- mento), e a resposta insuficiente às medidas de recu- peração e mediação propostas pela escola. A menção a esses aspectos associados a estudantes vistos como “problemáticos” ou associados aos “problemas esco- lares” revelam que questões pedagógicas podem ser, portanto, convertidas em elementos depreciativos de identidades enquanto estudantes a partir de processos de construção de estigma.


    Quadro 3 - Conjunto dos aspectos escolares depreciativos associados aos alunos e às alunas


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    Estudantes


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    1. Não se apropriar da leitura e escrita; ser copista.

    2. Defasagem entre idade/série maior ou igual a dois anos.

    3. Dificuldade e distúrbios de aprendizagem não investigados ou sem a assistência especializada necessária ou ser atendido por psiquiatra e precisar de medicação que não faz uso.

    4. Baixo desempenho acadêmico.

    5. Perda de valor da escola (deixar de ver a escola como uma possibilidade de “progredir socialmente”); não perceber a escola como meio de ascensão ou frequentar as aulas exclusivamente por causa do Bolsa Família.

    6. Responsáveis precisarem assinar várias ocorrências.

    7. Não responder adequadamente às intervenção e conversas com a Orientação (atendimentos que parecem não surtir efeito).

    8. Baixa frequência e atrasos frequentes - aparece como comportamento quando parece ser uma escolha deliberada do estudante.


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Fonte: elaboração própria com base nas entrevistas em profundidade realizadas.


A análise conjunto dos três quadros nos permitem ob- servar que o destaques dados às meninas, relacionan- do-as a problemas escolares, tem sob elas o mesmo efeito daqueles dados aos meninos: a construção de seus estigmas e a deterioração de suas identidades. A partir da compreensão teórica sobre as consequências do estigma (LINK e PHELAN, 2001; GOFFMAN, 2008),

é possível compreender que tais processos de produção do estigma refletem diretamente sob suas trajetórias e, portanto, cabe a escola pensar caminhos para rever- ter qualquer movimento de produção e construção de estigma.

A pobreza é um elemento, bem como ações de agres- sividade e o desrespeito à autoridade dos adultos in- dependem do gênero para serem enquadradas como elementos depreciativos da identidade discente.


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A identidade deteriorada de “aluno-problema” e “aluna-problema”

Os 106 estudantes que tiveram atributos depreciativos associados às suas identidades não foram citados com as mesmas ênfases. Houve estudantes que tiveram uma atenção maior por parte de seus orientadores. Dentre eles estavam Lucas e Giovana2.

Realizamos uma descrição densa de cada um deles identificado como problema na visão dos orientado- res educacionais entrevistados para compor a análise no que diz respeito à produção de estigma. Os trechos deixados entre aspas representam transcrições literais dos termos usados no decorrer das entrevistas.


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2 – Todos os substantivos próprios referenciados nas entrevistas foram substituídos por nomes fictícios a fim de preservar a identidade dos sujeitos que participaram direta e indiretamente da pesquisa.

Lucas

Lucas foi descrito por Juliana, sua orientadora na es- cola Urânio. Com 29 anos, formada em Pedagogia e especialista em Orientação Educacional, trabalhava na escola Urânio há um ano e meio. Ela conta que o menino já não estava frequentando a escola, embora sua presença ainda estivesse viva em sua memória.


Lucas era aluno da escola Urânio. Com 11 anos no se- gundo ano, ele era o “caso mais gritante que a esco- la teve” em 2017. Bastante pobre, “ele era claramente envolvido com o tráfico e tudo mais”. Os moradores próximos haviam relatado para a escola que ele esta- va envolvido com a criminalidade local e que já havia sido visto portando arma. Ele não só conseguia cau- sar problemas na sala, mas, ao sair da sala, causava “problema na escola inteira”. Se envolvia em “muito conflito com funcionários, de chegar a agredir”. Teve um episódio em que ele agrediu um inspetor quando o mesmo tentava separar uma briga sua. Ele “ia embora sem autorização de ninguém”, “não entrava em sala, ficava uma hora aqui embaixo”. “Agredia verbalmen- te”! “Agressão física também, um colega se queixa e ele vai e ‘ah, ele tava implicando comigo!’ Aí xinga e bate. Essas coisas.”. “Fugia da escola”, furtava objetos. Ele chegou a furtar uma bicicleta na escola, que de- pois devolveu, mas demandou uma intervenção gran- de. Se envolvia em situações “de bater, ou de pegar as coisas; ou de empurrar”. Sempre que questionado, justificava sua atitude ou a negava, dizendo não ter feito. Teve uma situação, que não se sabe se é verda- de ou não, onde foi falado que ele tinha levado uma arma para a escola. A Orientação e a Direção tentaram verificar a história, mas no dia não conseguiram en- contrá-lo. Lucas tem grande defasagem, “distúrbio de aprendizagem”. Ele também “não lia”. Chegou a ser encaminhado ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar devido à baixa frequência. Ele também tinha outros irmãos na escola e devido ao envolvimento com a criminalidade e com a violência, todos tiveram que sair da escola e se mudar. Em 2016 a mãe estava presente na escola, mas sempre com a fala “de que não sabia o que fazer” e parecia que ela nunca toma- va uma atitude. O padrasto do Lucas foi assassinado e a “casa em que eles moravam já não existia mais”. Era um barraco que foi destruído. Depois que eles se mudaram, apesar de continuarem matriculados, co- meçaram a faltar e a escola não conseguiu estabelecer contato com nenhum responsável. Depois de um tem- po a mãe conseguiu ir à escola antes que fossem evadi- dos para solicitar a transferência dos filhos. Como não

conseguiu matriculá-los em uma escola, ela acabou retornando com todos de novo para a escola, só que ninguém mais estava frequentando.


Parte das características depreciativas apresentadas nos Quadros 2, 3 e 4 estão presentes na narrativa pro- duzida pela orientadora sobre a trajetória de Lucas. É possível observar a convergência de aspectos com- portamentais, familiares e escolares que justificam o fato dele ter sido destacado por suas orientadoras. O comportamento agressivo, a defasagem entre idade e série, a relação estabelecida de forma insuficiente com a família (Lucas tem a família ausente) e o envol- vimento ativo com o tráfico de drogas atravessa a sua trajetória.

Lucas é destacado antes de evadir-se. Além do texto produzido a partir da entrevista da Orientadora Julia- na, dois registros podem ser referenciados. O primei- ro deles foi um relatório individual produzido pela es- cola e enviado para o Conselho Tutelar; o segundo re- gistro, também reproduzido neste artigo, foi feito por um membro do Grupamento de Educação Preventiva da Guarda Municipal (GEP) no Livro de Ocorrências da escola e faz menção aos procedimentos adotados dian- te de um evento protagonizado por Lucas.


“Relatório individual do aluno

O aluno Lucas, do 2º ano-D, vem apresentando um comportamento bastante disperso em todas as situa- ções de aprendizagem. O aluno não detêm sua aten- ção quando a professora está dando as diretrizes para que possa realizar independentemente as atividades propostas.

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Durante as atividades de registro não usa o tempo adequado para copiar os exercícios, sente necessidade de desviar sua atenção e sair de sala constantemente. Comportamento este que vem nos preocupando pois em algumas situações, onde haja qualquer conflito ou necessidade de se estabelecer limites, por mais sim- ples que sejam, se não for confortável para ele, é um transtorno, tendo uma reação explosiva com atitudes fortes como verbalizar suas insatisfações com palavras inadequadas, gestos e agressividade com todos os fun- cionários da U.E.

Amoreiras, 26 de fevereiro de 2016”

(Assinam professora e Diretor Geral da escola) Fonte: Arquivo da escola.

“Ocorrência – 15:13


Nós [GEP] acionamos a Conselho Tutelar a mando da coordenadora Deise que no referido fato que o aluno Lucas, 11 anos da 2D, xinga os funcionários da escola, fica rebelde nos corredores da Escola, atira cascas de bananas no refeitório e o mesmo informou a[sic] Sala de Operações que o Conselho Tutelar atua mediante agreção [sic] e a maus tratos do aluno é [sic] o mesmo [conselho tutelar], mediante a alegação, informou que não é de sua competência e falou para o GEP con- duzir a [sic] criança DP50. A guarda conversou com o aluno [Lucas] e sua mãe, á Sr [sic] Santina Amaral, o menino se desculpou e forão [sic] liberados” (Assinatura da diretora)

* Texto produzido no livro de ocorrências da escola pelo Guarda Municipal integrante do Grupo de Educa- ção Preventiva (GEP) e anexado ao relatório anterior.


Fonte: Arquivo da escola.


No primeiro registro, de caráter mais descritivo, são apontadas as características comportamentais e esco- lares do aluno ao Conselho Tutelar, o que, de alguma forma, expressa a materialização e aprofunda os ró- tulos associados à identidade do estudante referido. O estudante tem registrado em sua trajetória os sím- bolos de estigmas associados aos aspectos comporta- mentais, familiares e escolares mencionados na en- trevista.


Giovana.


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Ao falarmos sobre os problemas escolares, algumas meninas são apresentadas pelos orientadores educa- cionais com atributos depreciativos ligados a questões comportamentais, escolares e familiares escolares. Giovana, estudante da Escola Prata, foi referenciada por Sueli durante a entrevista. Além de falar sobre o caso, a orientadora de 52 anos, que também era pro- fessora em outro município e lotada na escola há me- nos de um ano, também permitiu acesso ao texto do relatório que havia sido produzido e enviado ao Conse- lho Tutelar com informações sobre a menina.


Giovana é uma menina que foi abrigada e que vive “uma situação de risco social na família”. É uma me- nina bastante pobre. Uma mãe de uma outra aluna que não é sua parenta realizou sua matrícula na esco-

la, mas Giovana dizia estar morando com a irmã. Por mais que tentem, a escola não tem contato com nin- guém da família. A menina tem uma deficiência na perna, usa prótese e vem caminhando de longe. Sueli sinalizava: “quando a gente chama e diz que quer con- versar com a família, ela some!”. A menina já fez al- gumas ameaças a uma professora e a escola produziu um documento que foi encaminhado para o Conselho Tutelar em função disso e das faltas. Depois de amea- çar a professora, ela não compareceu mais à escola. 3


O texto produzido a seguir traz outros elementos sobre o comportamento da menina:


“Relatório

Aluno: Giovana Nascimento Filiação: Marina Bretas

Data de nascimento: 17/01/2001 End: Sem informação

Tel de contato: sem tel de contato

Informamos ao Conselho Tutelar de Amoreiras, que a aluna supracitada, está devidamente matriculada no 5º ano, turma B, no 1º turno, no Ensino Fundamental

I. É uma aluna com algumas repetências no 5º ano, não obtendo conceitos na média ou acima, nas diver- sas áreas do conhecimento, podendo ser considera- da com um rendimento abaixo do esperado para um aluno do 5º ano. A aluna conversa o tempo todo, não realiza as tarefas propostas, o teor de suas conversas é sempre de cunho sexual, demonstra um conheci- mento amplo com relação à comunidade do entorno e as lideranças da mesma. No dia 31 de maio do cor- rente ano, a aluna Giovana foi ao bebedouro que fica ao lado da sala da Professora Jussara e pensou que a mesma havia batido com a porta “em sua cara”, assim passou a xingá-la e a ameaçá-la de morte, cabe dizer que segundo informações a aluno tem um irmão na comunidade do “Pardal”, em Santa Marta. A aluna também conversou com a professora da sala de Recur- sos que confirmou a história. No mesmo dia, ao re- tornar à escola, Giovana falou em alto e bom som em sua sala de aula, que falaria com seu irmão para dar um sumiço na professora Jussara, pois segundo Gio- vana, a professora bateu a porta da sala na sua mão enquanto ela se penteava no bebedouro, ainda sobre o sumiço da professora, houveram (sic) relatos que a aluna além de pedir para dar um sumiço na mesma pediria ao irmão para deixá-la num local ermo e afas-


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3 – Texto construído a partir de fragmentos da entrevista concedida por Sueli e acesso ao relatório produzido pela escola e que foi enviado ao conselho tutelar.

tado, após roubá-la e que ela, Giovana, iria conferir se o serviço tinha sido feito. A aluna vem solicitando uma transferência para o Escola 07 várias vezes. Em outra ocasião, perguntou à professora regente o que precisaria fazer para ser expulsa da Unidade Escolar e ir estudar na Escola Barros. A professora Jussara ficou muito preocupada com a atitude da aluna.

Após o ocorrido a aluna, até a presente data, não tem comparecido à unidade escolar.

Amoreiras, 01 de junho de 2017.”

Assinatura: Diretora e conselheiro que recebeu o re- latório.


Fonte: Arquivo da escola.


Giovana aparece depreciada por aspectos semelhantes aos dos meninos. No entanto, além do comportamen- to considerado agressivo e o envolvimento com a cri- minalidade na figura do irmão – que é da “comunida- de” e por isso poderia “dar um sumiço4” na professora – também aparece no texto do relatório, quase como normas a serem atendidas, as questões relacionadas às moralidades sexuais, materializadas na crítica às “conversas de cunho sexual”. Esse enquadramento é comum a todas as meninas cuja identidade de estu- dante foi depreciada.


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Análises e comparações.

Os trabalhos de PAYET (1995); FERGUSON (2001); WI- LLIS (2008), MOIGNARD (2015); MOIGNARD & RUBI

(2013); RAMOS (2005) e Gomes (2020) nos ajudam a pensar nos elementos constitutivos dessa categoria social estigmatizada, os “alunos-problemas”. São in- vestigações realizadas em contextos diferentes do bra- sileiro, em termos socioeconômicos e culturais e que revelam aspectos dessa construção social homólogos ao que encontramos no caso brasileiro.

Nos três contextos – EUA, França e Brasil – visões so- bre as famílias dos estudantes e sobre os espaços so- ciais em que residem são utilizadas para justificar, no plano narrativo, o baixo desempenho acadêmico dos estudantes e os problemas que eles trazem à escola. É curioso observar essas homologias, porque em to- dos os cenários os estudantes são lidos como frutos de suas famílias e/ou de sua inserção em zonas suposta- mente degradadas das cidades. Essas inserções trans- formam-nos em sujeitos ineducáveis antes mesmo de terem adentrado na escola.

Nesse sentido, o trabalho de Goffman (2008) foi fun- damental para que analisássemos as correlações entre esse conjunto de percepções dos agentes escolares e o baixo desempenho acadêmico dos estudantes. Go- ffman (2008) informa que o estigma é fruto da asso- ciação de indivíduos ou grupos sociais a identidades sociais deterioradas. Leituras sobre locais degradados da cidade como deterioradas fazem com que os indiví- duos oriundos desses cenários sejam lidos como tam- bém degradados, o que os transforma em sujeitos es- tigmatizados e, portanto, inabilitados para aceitação social plena.

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No caso das meninas, agregam-se também um con- junto de moralidades relacionadas à sexualidade fe- minina. Quaisquer comportamentos que se divirjam das sexualidades socialmente legitimadas fazem com que uma menina seja estigmatizada e também vista como alguém que não pode ter aceitação social plena. Ocorre que nos jogos dos estigmas, os estigmatizados também se percebem como tal, e passam a intera- gir com a instituição – nesse caso a escola – com base nas leituras que ele ou ela reconhecem sobre as suas próprias existências. Como o próprio Goffman (2008) aponta, o estigma é um processo social que ocorre no


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4 – A expressão “dar um sumiço” surge associada à ideia de homicídio com ocultação de cadáver.

plano das microrrelações e reverbera em termos ma- crossociológicos por vezes atingindo grupos inteiros. Nesse caso, como fenômeno microrrelacional, o sim- ples fato de possuir características de origem social possivelmente depreciativas não torna necessaria- mente um menino ou uma menina estigmatizado(a). Há outros meninos e outras meninas que também são pobres e não são estigmatizados. Entender a ló- gica das microrrelações que separam uns e outros atribuindo rótulos e estigmas a uns e não a outros é um dos principais desafios da pesquisa sociológica sobre a educação no Brasil, assim como na França e nos EUA. Todos os trabalhos citados revelam minú- cias desse processo social e permitem-nos argumen- tar sobre a possível presença dessa categoria “alunos-

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-problemas” como um elemento central para o contro- le dos comportamentos na escola. Em certa medida, eles e elas são vistos como exemplos ao contrário. São utilizados pelos agentes escolares para dizerem aos outros alunos e alunas o que não se deve ser para ser um bom aluno e ter sucesso na escola. Nesse jogo de interações, aqueles que são estigmatizados como “alunos-problema” são impedidos de terem sucesso em suas trajetórias escolares. Não se trata somente de reprodução de desigualdades de origem, mas de produção de desigualdades no âmbito das escolas.


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Considerações finais.

Os símbolos depreciativos carregam regularidades que nos ajudam a pensar a construção dos estigmas a partir de componentes mais gerais para a compreensão da construção de alunos-problemas no contexto escolar. Os estudantes referenciados, separados dos demais, manifestam e passam a representar o que é considerado inadequado. A manifestação do comportamento violento e desafiador possui maior ênfase quando se refere aos meninos, enquanto os aspectos de sexualidade e da afetividade são quase que exclusivos das meninas. Essa diferença também aparece no atributo envolvimento com o tráfico. Enquanto entende-se que os meninos se envolvem de forma ativa, atuando e até mesmo chefiando a boca de fumo, as meninas aparecem envolvidas através da afetividade e da prática do sexo, seja por namorar alguém da boca ou por engravidar a partir dessas relações. Seu maior posto, em contraponto a chefia atribuída ao menino, é o de “primeira-dama”: aquela que tem poder, mas que se submete à força do “dono” da boca.

Estes estudantes, colocados no lugar do “outro”, têm suas famílias inquiridas e chamadas a tomarem providências. A ausência de respostas consideradas adequadas ou suficientes à escola, parece favorecer o surgimento de leituras depreciativas do contexto familiar e socioeconômico, para além dos aspectos comportamentais manifestos.

Essas visões narradas carregam histórias e situações de contextos socioeconômicos e familiares precários, marcados pelo predomínio de relações abusivas e violentas. Neles, as crianças e adolescentes convivem com a falta de recursos financeiros e com a falta de amparo, atenção e cuidados adequados por parte da família. Os estudantes estigmatizados são vistos em suas escolas como vivendo, ou sobrevivendo, a alguma situação de precariedade material ou social em suas vidas. E junto disso, passam a ser classificados como ineducáveis. Trata-se de um sistema complexo no qual não ocorre apenas a reprodução de desigualdades sociais, mas também a produção de novas formas de desigualdade no âmbito dos sistemas educacionais.

Os “alunos-problemas”, em geral, compartilham do baixo desempenho acadêmico expresso, de forma mais explícita, na elevada defasagem idade/ série ou no não domínio da leitura e escrita. Algo que não surge associado à capacidade cognitiva, já que muitos deles

são vistos como “muito inteligentes”. Nesse sentido, além do comportamento inadequado e de serem vistos como pobres ou vulneráveis, os resultados escolares considerados insuficientes são justificados e lidos como chancela à percepção depreciativa de suas identidades enquanto estudantes.

Em síntese, é possível verificar que atributos depreciativos associados a alunos-problemas englobam aspectos comportamentais, leituras sobre características socioeconômicas, e de desempenho escolar dos estudantes. Esta constatação permite compreender, para além da organização social da escola expressa na construção de regras, como elementos simbólicos estão presentes na produção desse estigma na escola.


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