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EDUCADORAS DE INFÂNCIAS: POSSIBILIDADES FORMADORAS EMANCIPATÓRIAS
NARRADAS NOSDOSCOM COTIDIANOS ESCOLARES
Erica Teixeira
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Graça Reis
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Soymara Emilião
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Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
O artigo discute saberes e práticas formativas de pro- fessoras que atuam na educação infantil em uma es- cola pública carioca1. Trazemos para esta discussão vivências no exercício da docência, desinvisibilizan- do experiências narradas pelas vozes das professoras, na compreensão de que é um dos caminhos possíveis para pensar a formação de educadoras das infâncias, suas particularidades e especificidades. Entendemos que discutir a formação docente colabora na constru- ção de uma educação pública que oportunize a apren- dizagem de todas as crianças. Este trabalho se ancora na pesquisa nosdoscom com os cotidianos escolares e nas pesquisas narrativas e defende que os sujeitos das escolas produzem conhecimento em suas práticas sin- gularessociais, tecendo modos de fazersentirpensar a partir de suas subjetividades.
Formação Docente, Pesquisa Narrativa, Educação Infantil, Cotidianos Escolares.
– Refere-se à cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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Thearticlediscussesknowledgeandformativepractices of teachers working in early childhood education in a public school in Rio de Janeiro. We bring to this discussion the experiences in the exercise of teaching, making such experiences narrated by the voices of the teachers visible, understanding that it is one of the possible ways to think about the training of childhood educators, their particularities, and specificities. We believe that discussing teacher training contributes to the construction of a public education system that provides learning opportunities for all children. This work is anchored in research in/from/with everyday school life and narrative research, and it argues that the subjects in schools generate knowledge through their unique social practices, weaving ways of feeling and thinking based on their subjectivities.
Teacher Training, Narrative Research, Early Childhood Education, Everyday School Life
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DATA DE SUBMISSÃO: 2023/06/27 DATA DE ACEITAÇÃO: 2023/10/16 DOI: 10.25767/SE.V32I1.32408
Introdução
Ao nos propormos a discutir os saberes e práticas for- mativas de professoras que atuam na educação infantil em uma escola pública do Rio de Janeiro, desinvisibili- zando experiências a partir de narrativas docentes, en- tendemos que é fundamental contextualizar o processo de implementação da Educação Infantil no Brasil.
Historicamente, a Educação Infantil no Brasil foi re- conhecida como dever do Estado desde a Constituição Federal de 1988, mas é com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional2, promulgada em meados da década de 1990, que a Educação Infantil passou a ser reconhecida como primeira etapa da educação básica. Concebida inicialmente na perspectiva do assisten- cialismo e sob um caráter compensatório, a educação das crianças pequenas passou a ocupar, nas últimas décadas, os debates educacionais em resposta a movi- mentos sociais em defesa dos direitos das crianças (Ministério da Educação [MEC], 2006, p.9). Assim, a partir da Lei de Diretrizes de Bases, a Educação Infantil passa a ser ofertada no Brasil nas modalidades de creches às crian- ças até três anos, e pré-escolas às crianças de quatro e cinco anos, visando ao seu seu desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social (Lei n. 9.394/96).
Conforme prevê a Agenda 2030 da ONU3, para alcan- çarmos condições dignas de qualidade de vida para todos os seres humanos e reduzir desigualdades, é ne- cessário “assegurar a educação inclusiva, e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendi- zagem ao longo da vida para todos4”. Entretanto, o que alguns estudos problematizam (Kramer, 1999, 2002; Kramer & Nunes 2007; Guimarães, 2023) é que, no trabalho realizado em algumas creches e pré-escolas, ainda persiste o caráter assistencial, desconsiderando as dimensões educativas, sociais e culturais, funda- mentais para favorecer o desenvolvimento pleno das crianças e seu direito de cidadania. Neste sentido, os debates sobre o cuidar e educar cercam os cotidianos das professoras nas escolas e suscitam reflexões a res- peito da função do educador das infâncias.
Diante do panorama apresentado acima, é possível afirmar que, historicamente, formar professoras para
atuar com crianças pequenas, entre 0 a 3 anos, é uma tarefa recente para as escolas brasileiras. Somente a partir do debate sobre a Educação Infantil surge a ne- cessidade de refletir sobre a formação de profissionais e de estabelecer possibilidades curriculares para as crianças pequenas. A partir do reconhecimento das particularidades do público infantil, se voltaram os estudos para esses profissionais, especialmente nos aspectos relativos à formação, visto que transbordam especificidades na educação das infâncias.
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Essa especificidade da Educação Infantil evidencia as fragilidades da formação docente . A partir da narra- tiva das professoras é possível tensionar a potência de uma formação nosdoscom os cotidianos da escola e as políticas públicas de formação docente. No diálogo que propomos com as narrativas de professoras, a respeito das políticas públicas promovidas pelo sistema edu- cacional em que as docentes atuam, recorremos a um estudo realizado por Nascimento, Silva e Avelar (2022). Em seus estudos, as autoras objetivam apresentar algu- mas reflexões sobre a formação continuada de profes- soras realizadas entre os anos de 2010 e 2020 na rede de ensino em questão. Suas pesquisas (Nascimento, Silva & Avelar, 2022, p. 12) apontam para a importância da formação continuada, mas visibilizam a descontinui- dade das ações formativas promovidas, além da fragili- dade em transformar essas ações em políticas públicas. Os estudos mostram que as ações voltadas para a for- mação continuada consistem na promoção de cursos, palestras, oficinas e outras estratégias dirigidas às professoras em exercício. No entanto, sobre a partici- pação nessas ações de formação continuada, as auto- ras evidenciam que a maioria das professoras ouvidas por elas não teve oportunidade de participar.
Quanto às formações das professoras, o que se perce- be a partir da pesquisa de Nascimento, Silva e Avelar (2022), quanto à natureza das atividades oferecidas a determinados grupos de docentes, é que estas, apesar de muito diversas, têm como principal lócus de for- mação a própria escola e a coordenadora pedagógica como a figura formadora das professoras na escola. O estudo também evidencia que a maioria das docentes considera pouca a oferta de ações de formação e des- taca que, muitas vezes, essas professoras buscam por
– A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ou Lei n. 9.394/96, define e regulariza a organização da educação brasileira e se baseia nos princípios da Constituição Federal.
– Organização das Nações Unidas.
– A Educação de Qualidade é o quarto dos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. Esses objetivos fo- ram formulados com a intenção de superar as questões sociais que atingem as populações mundiais, como a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a promoção dos Direitos Humanos. O quarto objetivo está disponível em: https://brasil.un.org/ptbr/sdgs/4 . Acesso em: 28 jun. 2023.
formação fora deste sistema de ensino, o que confirma o interesse por formação por parte delas.
Kramer (1989) e Nascimento (1996) (apud Nascimento, Silva & Avelar, 2022, p.12) apontam que a ausência de continuidade nas ações formativas combinadas à de- sarticulação com projetos coletivos ou institucionais é uma das causas do fracasso das estratégias de forma- ção continuada implementadas pelos sistemas de en- sino no Brasil. Desta forma, evidenciar a importância da implementação de políticas públicas de formação docente é um desafio que ainda merece muita atenção e discussão.
Para além das especificidades nas relações de ensino-
-aprendizagem e políticas públicas para esses docen- tes, entendemos que a formação de educadoras das infâncias é pauta relevante nas discussões sobre o combate às desigualdades. Em seus estudos, Campos (1997) afirma que a Educação Infantil constitui uma das áreas educacionais que mais devolve à sociedade os recursos nela investidos (p.101). Ao analisar as prá- ticas educativas presentes no cotidiano de instituições de educação infantil, a Campos et al. (2011) aponta que “crianças mais pobres, em particular, podem se bene- ficiar significativamente de uma experiência pré-es- colar de boa qualidade” (p.28). Assim, ao investir na formação de educadoras das infâncias, coopera-se no debate de questões sociais e da redução das desigual- dades educacionais.
Considerando as complexidades desta modalidade de atendimento e, a partir dos saberes e práticas forma- tivas docentes, neste trabalho, buscamos conhecerpes- quisar5 histórias de vida-formação (Bragança, 2011) de professoras da Educação Infantil carioca. Entende- mos que a opção epistemetodológica possibilita pensar a formação das professoras, valorizando a experiência como saber potente que nos convoca à reflexão para além do modelo hegemônico que considera a ciência moderna e grandes narrativas como forma única de legitimar saberes.
Nesse sentido, objetivamos a investigação da forma- ção docente de educadoras das infâncias na busca de perceber as miudezas das criações, das politicaspráticas (Oliveira, 2013) dos praticantes (Certeau, 2008) da esco- la e que promovem partilhas, aprendizagens e (trans) formações nos cotidianos da Educação das Infâncias. Em Certeau (2008), praticante é o que cria, no uso, um espaço de jogo nas maneiras de utilizar aquilo que lhe
é imposto e, sem sair do lugar, instaura pluralidade e criatividade.
Assim, o que nos interessa é refletir nas criações des- ses praticantes que, trazendo seus saberesfazeres in- serem uma tessitura complexa que envolve teoria e prática como eixos inseparáveis, espaçotempo em que as professoras se formam na coletividade e onde são tecidos conhecimentos invisibilizados sob a enganosa previsibilidade atribuída ao cotidiano.
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Compreendemos que os saberes tecidos nessa cons- trução formativa e nas práticas desveladas em cada contexto de escola convidam a nos debruçarmos sobre os múltiplos contextos cotidianos em que vivemos e como neles nos formam em laços de coletividade. Ao partilhar narrativas de (trans)formações, encanta- mentos e deslocamentos, que emergem do cotidiano da escola, percebemos indícios potencialmente eman- cipadoras na formação de educadoras de infâncias ca- riocas.
Para esse propósito, organizamos este artigo em qua- tro partes. Na primeira, abordaremos considerações sobre educação infantil no cenário nacional. No se- gundo momento, tecemos reflexões acerca das nossas escolhas epistemopolíticometodológicas inscrevendo este trabalho junto ao campo de pesquisa nosdoscom os coti- dianos escolares (Alves, 2001; Garcia, 2015) e a pesquisa narrativa entendendo o pensamento narrativo como forma de representar e entender a experiência (Clandinin & Connelly, 2011, p.48). Apostamos na narrativa como dispositivo de pesquisa-formação (Bragança, 2018), que mobiliza processos reflexivos e conhecimentos que nos formam em partilha. Em seguida, refletimos sobre a formação docente a partir da vivência de duas professoras da Educação Infantil de uma rede públi- ca da cidade do Rio de Janeiro em costura com nossas referências na pesquisa. Na última seção deste traba- lho, apresentamos as considerações finais entenden- do-as como reflexões inacabadas de um movimento contínuo e de entendimentos provisórios.
– Neste texto utilizamos o princípio da juntabilidade, que a partir da junção de palavras concede sentido e significado diferente daqueles que
tinham quando separadas (Alves, 2001).
Pesquisar narrativamente em Educação: uma opção epistemopolítico- metodológica
Durante muito tempo, o paradigma científico moder- no assumiu o conhecimento como um saber oriundo de uma verdade comprovável a partir de ideias de objetivi- dade, controle, generalização e universalidade (Morin, 1996). Essa maneira de pesquisar, apesar de ter opor- tunizado avanços na história da humanidade, excluiu formas outras de conhecer/investigar. Considerando a pluralidade do mundo, suas culturas e saberes, enten- demos que este modo de ciência reduziu possibilidades de conhecer multiplicidades não comprováveis e con- troláveis, provocando um desperdício das contribuições culturais e sociais advindas das experiências dos sujeitos (Santos, 2019), suas subjetividades e singularidades.
Neste sentido, uma forma outra de pesquisar é uma posição epistemológica e política que nos convoca a indagar as múltiplas formas de saber/pensar/existir. Entendemos que, ao investigar os processos formati- vos das educadoras das infâncias, faz-se necessário compreendê-los com todos os sentidos, deixando-nos afetar pelas experiências, como modo de desinvisibili- zar saberes e práticas, tornados invisíveis pela Moder- nidade, na partilha da compreensão de Boaventura de Sousa Santos, a partir da Sociologia das Ausências (Santos, 2006), desnaturalizando os mecanismos de opressão, para compreender a potência inventiva e original desses saberes.
Da mesma forma, ao optar pelas narrativas como me- todologia para este trabalho, nos ancoramos em San- tos (2007), que propõe uma ruptura aos paradigmas hegemônicos das pesquisas tradicionais e desconstrói a ideia de que o único saber legítimo é o produzido pela ciência moderna. Segundo o autor, o desperdício das experiências cognitivas, dos saberes e das culturas negligenciadas levam à destruição de algumas formas de saberes locais e à inferiorização de outros. Assim, o modelo objetivo, generalista e universal colabora para ilegalizar práticas e grupos sociais e impede a emer- gência de novos saberes.
Nesta proposta, nos ancoramos nas pesquisas nosdos- com os cotidianos escolares entendendo as escolas,
para além de um espaço de repetição, mas de criação de conhecimento (Oliveira, 2008), desinvisibilizamos os saberes que emergem das práticas docentes. As- sim, temos tecido nossos trabalhos em costura com experiências singularessociais (Reis, 2022) contadas pe- los sujeitos que habitam os cotidianos. Esses movi- mentos promovem aprendizagens coletivas que deli- neiam contornos na tessitura de uma epistemologia outra. Segundo Reis (2023), “é preciso reconhecer que somos sujeitos de histórias e que, ao mesmo tempo em que as tecemos, nos formamos continuamente por meio delas” (p.2).
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Para isso, Alves (2001) nos convoca a um mergulho nos cotidianos com todos os sentidos, na imersão no universo a ser pesquisado, porque é na escola que encontramos pistas, fragmentos, miudezas que nos provocam a refletir sobre os caminhos possíveis para a formação de professoras em horizontalidade.
A pesquisa com narrativas de histórias vividas nos pa- rece carregada de possibilidades emancipatórias. Te- mos aprendido que ao olharmos para nós mesmas/os e compreendermos que nossas aprendizagens estão re- lacionadas às nossas redes tecidas na experiência pes- soal (singular) e coletiva (social), podemos nos abrir à possibilidade de perceber o quanto as histórias dos outros são também tecidas por meio dos seus vividos, possibilitando um conviver na diferença sem hierar- quização (Reis, 2023, p. 7).
Ao apostarmos epistemopolíticometodologicamente na nar- rativa como forma de fazer pesquisa com os cotidianos, a partir das experiências narradas pelos sujeitos, somos inundados de indagações que nos desfazem, descascam, mas também nos refazem em (re)aprendizagens que nos movem a perceber outras possibilidades de pensar e pra- ticar as ações cotidianas. É nesta tessitura que propomos uma pesquisa dialógica, ancorada na construção coletiva de conhecimento, no reconhecimento das potencialida- des dos fazeres docentes afirmando a formação como pro- cesso contínuo (Reis, 2014), emancipatório e em partilha (Bragança, 2018).
As narrativas, com as quais dialogamos neste artigo fo- ram captadas de modo oral, em rodas de conversa, em encontros, no decorrer de 2022. Posteriormente, o ma- terial foi transcrito e apresentado às suas produtoras, ensejando novas conversas. As professoras dessa pes- quisa atuam em uma escola pública da cidade do Rio de Janeiro que atende crianças de 1 à 5 anos. As professo- ras participantes, autoras das narrativas foram infor- madas do presente estudo e autorizaram que as escritas fossem publicizadas e seus nomes divulgados.
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Narrativas das Educadoras das Infâncias como possibilidades de formação cotidiana e coletiva
Com a finalidade de garantir o desenvolvimento pleno do público a que se destina e buscando a proteção integral das crianças, entendemos a necessidade de uma Educação Infantil que privilegia uma rotina rica, equilibrada, variada em oportunidades e desafios. Desta forma, valorizamos a importância de políticaspráticas (Oliveira, 2013) que provocam e sustentam o crescimento pleno e desenvolvimento saudável das crianças por meio de propostas curriculares que contemplem vivências plurais, pertinentes e relevantes para todos os sujeitos envolvidos nos cotidianos escolares.
Em seus estudos, Kramer (2006) nos convoca a refletir sobre a evolução de políticas educacionais voltadas para a educação de crianças pequenas que, nos anos setenta, defendiam a educação compensatória com vistas a suprir as carências culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas provenientes das camadas populares (Kramer, 2006, p. 799). Segundo a autora, ao longo dos anos, com os avanços nos estudos sobre as infâncias, as crianças começaram a ter suas especificidades respeitadas e passaram de seres carentes, deficientes, imaturos, defasados, para serem compreendidas como sujeitos de direitos, criadoras de cultura e produzidas na cultura. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, concebemos a criança como:
Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (MEC, 2010).
Pensando na concepção de criança como sujeito, a formação de professoras da Educação Infantil passou a
ser um dos grandes desafios das políticas educacionais. O cunho maternal associado historicamente ao perfil das educadoras das infâncias colabora para o entendimento errôneo de que não precisam de formação específica. O conceito de criança trazido pelas Diretrizes Curriculares (MEC, 2010) demonstra um sujeito que necessita não apenas de cuidados, mas de uma educação que explore suas potencialidades, o que requer do educador um olhar para as particularidades e especificidades das infâncias.
Entendemos que, ao problematizarmos neste artigo a formação docente na Educação Infantil, discutindo os saberes e as práticas formativas de professoras que atuam em uma escola pública carioca, em área periférica, colaboramos para fortalecer uma escola democrática e contrária à injustiça social com vistas a uma educação emancipatória. Neste sentido, é importante refletir sobre a relação direta entre a formação do educador das infâncias e o respeito ao direitoàeducaçãoplenaparaascrianças. Consideramos que faz parte de um processo de democratização da educação no sentido da potência desses profissionais e seus saberes para o enfrentamento das desigualdades. Na riqueza que habita nas múltiplas histórias de professores é que nos formamos em partilha, exercitando o não desperdício da experiência (Santos, 2007). Desta forma, entretecemos duas narrativas de professoras da Educação Infantil, a partir das escolhas epistemometodológicas desse trabalho, com as quais dialogamos e tecemos reflexões a respeito da formação docente coletiva, cotidiana e singularsocial (Reis, 2022). Como um fio de bordado, a primeira experiência que se enlaça ao artigo é de uma professora, atuante em escola pública carioca, que narra sua trajetória na docência, relacionando sua formação com a construção da proposta de Educação Infantil na rede em que trabalha. A partir de sua narrativa, percebemos indícios do nascimento de uma estruturação da educação para a primeira infância como política pública, mas, também do nascimento de uma profissional que vai se construindo ao longo desse contexto.
Eu cresci com a Educação Infantil da rede em que trabalho. Comecei a lecionar quando a Secretaria de Educação assumiu a pasta da Educação Infantil no lugar da Secretaria de Assistência Social. Antes, o foco era apenas assistencialista. Eu não tive a oportunidade de me aprofundar na teoria porque na minha formação de professores a nível médio, o foco não era a Educação Infantil. Eu fiz o caminho inverso e fui aprendendo na prática. Foi na prática que eu fui vendo o que de fato
funcionava com as crianças. Posteriormente, eu tive a necessidade de procurar uma formação superior. Mas, em conversas com as colegas sempre comentávamos que as aulas eram muito “soltas” e que acabavam por não fazer muito sentido para as crianças. A gente nunca se encontrava dentro daquela proposta. Fui me construindo na docência experimentando, trocando com as colegas, conhecendo as crianças e observando o que funcionava e o que não funcionava. Foi na prática, errando, acertando, observando a postura das colegas que ao longo dos anos fui me dando conta do que eu precisava investir ou abandonar na minha prática (Professora Daniela). 6
A narrativa da professora Daniela nos encaminha a refletir acerca dos processos de formação docente contínua (Reis, 2014) que são sempre políticospráticos na medida em que todas as decisões consideradas práticas estão impregnadas de escolhas políticas. Assim, ao atravessarem, torcerem, retorcerem e distorcerem as propostas de implementação das políticas educacionais e no fluxo do fazerpensarsentir vão se engendrando esses sujeitos, vivenciando uma formação docente autoral na qual estão envolvidas aprendizagens, (des)aprendizagens, dificuldades e enfrentamentos que esses processos vão ensejando nos praticantes das escolas. O que a professora relata quanto aos avanços na administração das creches e pré-escolas como integrantes de um sistema de ensino também estão impregnados de sua história formativa enquanto parte de sua trajetória profissional.
Destacamos a percepção da professora Daniela de ter seu próprio processo formativo tecido na partilha com suas colegas de profissão. Segundo Bragança (2011), “construímo-nos a partir das relações que estabelecemos conosco mesmos, com o meio e os outros homens e mulheres, e é assim, nessa rede de interdependência, que o conhecimento é produzido e partilhado” (p. 158). Nos estudos de Alves (2001) há o entendimento da necessária tessitura entre o narrar e o sentir para a compreensão científica dos cotidianos. Para a autora, através das narrativas, imagens e sons, indicamos processos vividos, imaginamos o que poderia/pode acontecer nas escolas e projetamos outros futuros (Alves, 2019, p. 21-22). Para isso, é necessária outra escrita, que deixe emergir as experiências de vida que alimentam os currículos e que brotam do “chão das salas de aula”, enraizados nas vivências cotidianas.
(…) é possível transmitir o que for sendo apreendido/ aprendido, nesses processos e movimentos, da mesma maneira como transmitia o que acumulava/ via/observava em uma pesquisa dentro do paradigma dominante? Ao colocar a pergunta do jeito que a fiz, significa que entendo que é preciso uma outra escrita para além da já aprendida. Há assim uma outra escritura a aprender: aquela que talvez se expresse com múltiplas linguagens (de sons, de imagens, de toques, de cheiros etc.) e que, talvez, não possa ser chamada mais de “escrita”; que não obedeça à linearidade de exposição, mas que teça, ao ser feita, uma rede de múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte muito além de dar respostas; que duvide no próprio ato de afirmar, que diga e desdiga, que construa uma outra rede de comunicação, que indique, talvez, uma escritafala, uma falaescrita ou uma falaescritafala (Alves, 2008, p. 30-31, grifos nossos)..
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Na busca dessa falaescritafala, mergulhamos em nossas experiências formativas e das professoras colaboradoras para compreender que passamos por processos internos e externos ao pensapraticar os currículos no cotidiano das escolas, sendo este um território potente para a construção e valorização de saberes não hegemônicos, mas dignos de investigação e interesse. A narrativa da professora Daniela nos convoca a pensar acerca das relações que vão se formando no cotidiano escolar enquanto espaçotempo formativo onde se estabelecem redes que tecem currículos diariamente. Entendemos que essas inquietações fazem parte do processo de transformações nos quais estamos mergulhados no exercício da docência e resultam em práticas mais dialógicas.
Nesse movimento, entrelaçamos a narrativa de outra professora de Educação Infantil que nos provoca a refletir sobre os deslocamentos que vão nos construindo ao longo dos processos que nos formam quando nos permitimos questionar as certezas hegemônicas colocando-as à prova e constantemente sob suspeita em nossas práticas tecidas cotidianamente.
Eu olhava para as crianças e me perguntava: isso tem sentido para elas? Errado para mim é não ver sentido nas práticas e não ver o protagonismo das crianças. Antes eu via o meu protagonismo e o que eu achava que deveria propor a elas, mas não refletia se aquilo fazia sentido para elas. Em um momento isso começou a me incomodar. Algo importante nesse meu
– Daniela é professora de Educação Infantil em uma rede pública de ensino e compartilhou esta narrativa em uma roda de conversa formati- va em junho de 2022.
processo de formação foram as jornadas pedagógicas que eram momentos em que nós parávamos para estudar, ouvir, contar experiências. Isso foi plantando uma sementinha. As falas moviam em mim o desejo de fazer de outra forma e me perguntava que outros caminhos eu poderia utilizar (Professora Elizabete).7
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Na experiência narrada pela professora Elizabete a respeito de suas escolhas metodológicas, seus atravessamentos e percepções, ela destaca a importância da partilha nos momentos de formação propostos nas jornadas pedagógicas enfatizando estas ações como formativas e implicadas nos encontros (Garcia, 2015) com as teorias, com o outro e suas experiências, entendendo-as como formadoras, pois, apesar de sua fluidez no que se refere às suas interpretações, a “cada nova versão da história, a experiência é ressignificada, razão estimulante para a pesquisa educacional” (Passeggi, 2011, p.148).
Segundo Passeggi (2011), “ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si” (p. 147). Dessa forma, há processos formativos nos movimentos de contarmos nossas experiências e evocarmos nossas memórias como (trans)formadores de nós mesmos em coletividade. A narrativa da professora corrobora para entendermos os processos de formação como coletivos, à medida que o sujeito se deixa ser tocado e desestabilizado pelos movimentos educativos imbricados nas experiências dos sujeitos. Bragança colabora com esse pensamento afirmando que
(...) a intensidade das experiências que se tornam significativas e formativas são necessariamente coletivas; elas vêm de um investimento social, no caso do processo escolar, ou das tramas, dos encontros e desencontros que temos com os outros e com o meio, ao longo da vida (Bragança, 2011, p.160).
Neste processo de descontinuidades, rupturas e imprevisibilidades estão implicadas as (trans) formações que vivemos ao mergulhar nos fluxos dos afetos e nos deixamos afetar pelas nossas histórias contadas e pelas experiências partilhadas. Josso (2007) nos ajuda a compreender que o movimento de narrar “permite que as pessoas em formação saiam do isolamento e comecem a refletir sobre a possibilidade de desenvolver novos recursos, estratégias e solidariedades que estão por descobrir
ou inventar” (p.415). Desta forma, nos modificamos ao vivenciarmos e partilharmos momentos de aprendizagens reflexivas que nos desloquem e nos coloquem a pensar e repensar nossas práticas e escolhas pedagógicas, ressignificando sentidos e opções metodológicas.
–Elizabete é professora de Educação Infantil em uma rede pública de ensino e compartilhou esta narrativa em uma roda de conversa formati- va em junho de 2022.
Reflexões (in)acabadas e provisórias
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Este texto trata de uma pesquisa que está em curso e, por isso, nossas reflexões estão se complexificando no curso da investigação. Para organização e entendimento de nossos objetivos, nas seções presentes no artigo, buscamos discutir os saberes e políticaspráticas formativas de professoras que atuam na educação infantil em uma escola pública da cidade do Rio de Janeiro.
Como especificado, trazemos os estudos ancorados no campo dos cotidianos escolares em diálogo com narrativas docentes, o que tem nos ajudado a conhecer os processos formativos vividos por professoras, apontando para a importância dos processos coletivos de formação docente contínua.
Mergulhadas nessas vivências, percebemos a importância de ouvir as experiências valorizando saberes não hegemônicos que têm se mostrado dignos de investigação e interesse. As narrativas das professoras nos convocam a pensar sobre as relações que vão se formando no cotidiano escolar e o quanto estas se tornam espaços formativos importantes para a discussão sobre os currículos criados diariamente. Todoessemovimentodepesquisasótemsidopossívelem função de nossas escolhas epistemopolíticometodológicas. Ou seja, as narrativas docentes nos indicam sobre a necessidade de construção de políticas públicas que envolvam a escuta de professoras. Há um desperdício dessas experiências (Santos, 2019) e entendemos que esse desperdício limita a compreensão do que vem sendo produzido nas escolas no presente e que indicam que as criações docentes são dispositivo de pesquisa-formação (Bragança, 2018).
A potência desta formação docente cotidiana contínua modifica os praticantes e tensiona as políticas instituídas, provocando mudanças em todos: docentes e políticas, criando uma terceira via, fluida e em constante modificação no tempoespaço das escolas. Entendemos que no curso da investigação, no mergulho que fazemos nos cotidianos escolares, novos e outros indícios surgirão porque compreendemos que as escolas estão prenhes de invenção e criação de professores e estudantes. Basta crer para ver (Pais, 2003).
Alves, N. (2001). Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes (pp.13-38). DP&A.
Bragança, I. (2011). Sobre o conceito de formação na abordagem (auto) biográfica. Educação, 157-167.
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