OS REGISTOS DE ESCRITA PRECOCE DE CRIANÇAS

DE 5-6 ANOS: EVIDÊNCIA DA EVOLUÇÃO DAS CONCEÇÕES PRECOCES SOBRE A LINGUAGEM

S A B E R & E D U C A R 3 2 2 0 2 3

ESCRITA

Maria Cristina Vieira da Silva

Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti (ESEPF)

Joana Daniela Leão Moreira

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Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti (ESEPF)


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Resumo:

O artigo tem por objetivo apresentar a forma como os registos pedagógicos obtidos em torno das práticas de literacia emergente desenvolvidas em contexto de prática de ensino supervisionada, junto de crianças 5-6 anos, permitiram recolher evidências sobre as diferentes fases em que as crianças se encontravam, em termos de conceções precoces sobre a linguagem escrita. Partindo de uma amostra constituída por oito crianças de uma sala de cinco e seis anos, foi preparado um guião de entrevista para avaliação das conceções precoces sobre a linguagem escrita, que esteve na origem de registos das produções escritas das crianças, bem como do levantamento acerca das funcionalidades que estas atribuíam à leitura e à escrita. A análise dos dados recolhidos permitiu evidenciar que os registos das produções escritas foram determinantes na categorização das conceções infantis sobre a linguagem escrita, constituindo uma oportunidade para a educadora estagiária se apropriar de alguns aspetos da literacia emergente, dimensão particularmente relevante em termos da formação profissional docente na Educação Pré-escolar (Gimeno, 1988).


Palavras-chave:

Educação Pré-escolar; Literacia emergente; Registos pedagógicos.


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DATA DE SUBMISSÃO: 2023/09/11 DATA DE ACEITAÇÃO: 2023/09/18 DOI: 10.25767/SE.V32I2.32815

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Abstract:


The paper aims to show how the records concerning emerging literacy practices obtained in the context of supervised teaching practice, with children aged 5-6 years, allowed to collect evidence about the different stages in which children were, in terms of early conceptions about written language. Based on a sample of eight children aged five and six year- old, an interview guide was selected to evaluate early conceptions about written language, from which records of children’s written productions were collected, as well as a survey about the functionalities they attributed to reading and writing. The analysis of the collected data showed that the records of written productions were decisive to the categorization of children’s conceptualizations about written language providing an opportunity for the trainee teacher to appropriate some aspects of emerging literacy, a particularly relevant dimension in terms of professional teacher training in Early Childhood Education (Gimeno, 1988).


Keywords:

Early Childhood Education; Emerging Literacy; Pedagogical records.


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Introdução

Partindo da abordagem reggiana ao conceito de registo com intencionalidade pedagógica, o presente artigo centra-se nas práticas de literacia emergente desenvolvidas em contexto de prática de ensino supervisionada, junto de crianças de 5-6 anos, e na importância dos registos de escrita produzidos por estas crianças enquanto evidência e documentação pedagógica das diferentes fases em que as mesmas se encontravam, em termos de conceções precoces sobre a linguagem escrita.

Sendo a linguagem escrita (compreendendo-se, nesta expressão, a escrita e também a leitura), a par da oral, uma ferramenta essencial da atividade humana, defendemos, naturalmente, que a construção de conhecimentos em torno destas duas dimensões da linguagem humana deve ser fomentada desde cedo, antes mesmo da aprendizagem formal que ocorre com a entrada no 1.º ano de escolaridade. Efetivamente, segundo as orientações curriculares vigentes, a abordagem à linguagem escrita nesta fase “situa-se numa perspectiva de literacia, enquanto competência global para o uso da linguagem escrita, que implica utilizar e saber para que serve a leitura e a escrita, mesmo sem saber ler e escrever formalmente.” (Silva, 2016, p. 66). Entendido neste sentido lato de capacidade para fazer uso da linguagem escrita, com caráter informal, o termo literacia emergente (Teale & Sulzby, 1989) veio chamar a atenção para a necessidade de oferecer às crianças, desde cedo, experiências significativas com o código escrito que lhes proporcionem o conhecimento em termos quer da funcionalidade, quer das características formais e convenções específicas do registo escrito.

Neste processo de apropriação dos aspetos funcionais, figurativos e concetuais em torno da linguagem escrita, os registos das crianças, resultantes de interações com a escrita mediadas por adultos, podem ter um impacto significativo na promoção e na apropriação de conhecimentos e conceções sobre a linguagem escrita. Efetivamente, quando é convidada a fazer tentativas de escrita, mesmo sem saber escrever formalmente, a criança vai ter oportunidade de manifestar aquilo que já sabe (e também o que ainda desconhece) neste domínio. Através destas atividades, o educador coloca a criança perante potenciais situações de aprendizagem, podendo os seus registos constituir objeto de partilha e confronto de conhecimentos entre pares. Do ponto

de vista da formação dos futuros educadores, tais registos constituem um interessante objeto de análise e têm um potencial formativo elevado, na medida em que materializam determinados estádios de desenvolvimento que, de outra forma, passariam despercebidos.

Neste artigo, começaremos por uma breve revisão da literatura em torno do conceito de registo, de literacia emergente e da forma como as práticas que exploram as conceções precoces sobre a linguagem escrita asseguram a continuidade entre a Educação Infantil e o 1.º ano de escolaridade.

Segue-se a dimensão metodológica, no âmbito da qual serão explicitados os instrumentos e técnicas de recolha de dados, concretamente os registos de tentativas de escrita das crianças. Na linha do estudo realizado por Martins (1996), estes serão analisados e classificados em quatro níveis evolutivos, atendendo às conceções precoces sobre a linguagem escrita (concretamente as relativas ao processo de escrita): escrita pré-silábica, silábica, com fonetização e alfabética.

Por fim, apresentam-se as principais conclusões obtidas, bem como a lista de referências bibliográficas usadas ao longo do texto.


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Revisão de Literatura

REGISTO PEDAGÓGICO

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A origem do conceito e da prática da documentação pedagógica e a preocupação com o registo das pro- duções infantis, com finalidade pedagógica, tendo como objetivo evidenciar e dar visibilidade às apren- dizagens das crianças remontam ao programa para a primeira infância conduzido em Reggio Emilia, sob a égide de Malaguzzi. Nesta abordagem, a documen- tação pedagógica é entendida como um instrumento que permite não só dar testemunho da forma como as crianças aprendem e se apropriam do mundo que as rodeia, constituindo um objeto de análise e reflexão, como ainda promove a socialização das práticas das crianças no contexto da comunidade (junto dos pais, da própria instituição educativa e da comunidade em geral). Os educadores envolvidos na perspetiva reg- giana identificaram três tipos de funções associadas à documentação do processo pedagógico (Edwards,

Gandini, Forman, 1999): i) por um lado, proporciona às crianças a memória da evolução das suas aprendi- zagens; ii) por outro, constitui, para os educadores, um instrumento de análise e de avaliação que orienta a melhoria do processo educativo; iii) por outro ainda, assegura, aos pais e à comunidade educativa, infor- mação sobre as atividades realizadas.

Desde então, estes registos têm vindo a assumir ou- tros formatos, como o diário de aula (Zabalza, 1994), o portefólio (Sá-Chaves, 2004) e, mais recentemente, registos vários em plataformas digitais.

Do ponto de vista do seu teor, a documentação peda- gógica pode configurar diferentes formatos, recorren- do a diferentes linguagens: desde o registo de observa- ção redigido pelo educador a propósito das atividades e vozes das crianças, aos registos em áudio e vídeo, das fotografias aos próprios produtos do trabalho das crianças.


LITERACIA EMERGENTE

Atualmente, assume-se que a aprendizagem da leitura e da escrita tem início muito antes da entrada no 1.º Ciclo do Ensino Básico. Na Educação Pré-escolar, as crianças vão construindo conhecimentos sobre a lin- guagem escrita, os quais irão facilitar a sua aprendiza- gem formal (Justice & Kaderavek, 2002; Albuquerque & Martins, 2018). Este pensamento, centrado no conceito de literacia emergente, contraria aquilo que se consi- derou durante décadas, assumindo a conceção de que a aprendizagem da leitura e da escrita se iniciava com a introdução formal do código escrito.

O conceito de literacia emergente foi descrito por Ma- rie Clay, referindo-se a um conjunto de conhecimen- tos, competências e interesses manifestados pelas crianças relativamente à leitura e à escrita, que resul- tam de experiências vividas pelas mesmas. Já a “pa- lavra emergente indica que há sempre algo de novo a emergir na criança, sugerindo uma descontinuidade com o que existia.” (Viana, 2001, p.27) Neste sentido, Mata (2008, p. 9) refere que:


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Isto decorre do facto de as crianças interagirem, mes- mo em contextos informais, com outras crianças e adultos que utilizam a escrita, e de serem aprendizes activos, que constroem conhecimentos sobre o mun- do, à medida que exploram o meio envolvente e reflec- tem sobre as suas explorações. As interacções com a escrita, mediadas por adultos e outras crianças, têm um grande impacto no desenvolvimento das concep- ções e dos conhecimentos de que as crianças se apro- priam sobre a linguagem escrita.

As investigações de Ferreiro & Teberosky (1986), Mata (1991) e Martins (1996) revelaram que a aprendizagem da leitura e da escrita deve ser concebida como um pro- cesso contínuo que se começa a desenvolver em idades precoces e não apenas quando ocorre o seu ensino for- mal. Até há alguns anos, as conceções emergentes de literacia e os conhecimentos adquiridos pelas crianças antes do ensino formal da linguagem escrita não eram valorizados. O papel atribuído à Educação Pré-Escolar, no que concerne à linguagem escrita, era, no enten- der de Mata (2008), um pouco marginal. Esta posição, influenciada pelas perspetivas maturacionistas, as- sociadas à noção de pré-requisitos, defendia que, no ensino pré-escolar, apenas se deveriam fomentar ati- vidades e exercícios de discriminação (visual e auditi- va) e desenvolver aspetos ligados à motricidade fina e à linguagem oral.

A partir dos anos 80, em parte devido às investigações de Piaget e Vygotsky, começa-se a valorizar o papel ativo da criança e o papel mediador dos adultos que com ela interagem, para a compreensão do processo de apropriação da linguagem escrita: “A criança é en- carada, agora, como construtora de linguagem e de conhecimento, como geradora de hipóteses e empe- nhada na resolução de problemas, em vez de receptora passiva de informação”. (Viana, 2001, p.26)

É, pois, neste sentido, que surge uma nova perspectiva, denominada “literacia emergente”, a qual assenta no princípio de que o papel atribuído à criança é central. Esta perspetiva tem em conta a precocidade de todo o processo e realça o facto de as crianças aprenderem quando se envolvem em situações de exploração fun- cionais e reais, associadas ao seu dia-a-dia, através das quais vão refletindo sobre as características da lin- guagem escrita. Mata (2008, p. 10) refere assim que:


A terminologia “literacia emergente” procura realçar não só o facto de a leitura e a escrita estarem inter-re- lacionadas e se desenvolverem em simultâneo, como também a precocidade do envolvimento das crianças, que permite o emergir de concepções de diferentes ti- pos e que se vão sustentando umas às outras.


CONCEÇÕES PRECOCES SOBRE A LINGUAGEM ESCRITA

Chamando a atenção para o facto de que a aprendi- zagem da leitura e da escrita começa muito antes da aprendizagem, Vigotsky (1977, p. 39) afirmava que “(t) oda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história.” Efetivamente, desde idades precoces que as crianças se questionam e formulam hipóteses

sobre a escrita que as rodeia, sobre as suas funções, as suas características formais e as suas relações com a linguagem oral. Segundo Martins e Niza (1998, p. 47), a “estas hipóteses, a estas representações sobre a lin- guagem escrita, chamam-se conceções precoces sobre a linguagem escrita.”

Tal como referem Martins e Niza (1998, p. 95), as con- ceções precoces das crianças sobre a linguagem escrita podem ser analisadas à luz de três pontos de vista di- ferentes:


Funcionalidades da linguagem escrita

A descoberta e apropriação das funções da linguagem escrita tem sido alvo de estudo por diferentes auto- res nos últimos anos, atendendo à sua importância. Efetivamente, a investigação tem demonstrado que “o facto de as crianças terem algum conhecimento e compreensão sobre as funções da leitura e da escrita, antes de iniciarem a escolaridade obrigatória, parece facilitar a aprendizagem, refletindo-se no seu desem- penho.” (Silva, 2016, p. 67)

Segundo Mata (2008), a percepção e apropriação das várias funções da linguagem escrita desenvolvem-se proporcionalmente às experiências funcionais em que as crianças estão envolvidas no seu dia-a-dia, mais do que em função da sua idade ou desenvolvimento geral. Em concordância, Downing (1987, p. 183) diz-nos que a “aprendizagem da leitura (e da escrita) pode ser con- siderada como um resultado natural quando a criança está exposta a um meio global no qual a comunicação através da linguagem escrita é funcional.”

Assim, as crianças que, desde idades precoces, estão envolvidas na utilização da linguagem escrita e “vêem outros a ler e a escrever, vão desenvolvendo a sua pers- pectiva sobre o que é a leitura e a escrita e simultanea- mente vão desenvolvendo capacidades e vontade para participarem em acontecimentos de leitura e escrita.” (Mata, 2008, p.14)

Efetivamente, “quando escrevemos ou lemos fazemo-

-lo com funções e por razões específicas, pelo que a funcionalidade da leitura e da escrita é um elemento importante e integrante do processo de emergência da literacia.” (Mata, 2008, p. 11) Deste modo, crian- ças que têm vivências ricas no âmbito da leitura e da escrita, quer em contexto familiar, quer em contexto de jardim de infância, desenvolvem mais facilmente

conceções acerca da escrita e da leitura, o que as leva a ficarem mais motivadas e capazes para participar em atividades de emergência de escrita. Nesta lógi- ca, para as crianças que têm oportunidade de ouvir ler histórias, rimas, lengalengas, poemas, de ver os adultos que as rodeiam a escrever e a ler e a falar sobre determinado livro, ou visitar uma biblioteca, “(c)on- sequentemente, o seu conhecimento sobre as funções da leitura e escrita vai-se estruturando e tornando-se cada vez mais complexo e multifacetado, descobrindo quando, como e com que objetivos a linguagem escri- ta é utilizada.” (Mata, 2008, p. 14) Contudo, segundo Viana (2001, pp. 33-34):


Não chega, no entanto, ler para a criança; é preciso ler com a criança, utilizando vocabulário, sintaxe e ma- teriais que sejam motivantes e desafiadores. É preciso desenvolver a curiosidade da criança para com o texto escrito, para que ela se aproprie dele como objeto de fruição. Se a criança cresce num ambiente em que a atividade da leitura/escrita é inexistente, ela não terá oportunidades para levantar e testar hipóteses acerca do impresso.


Assim, segundo Silva (2016, p. 67):


A compreensão da funcionalidade e das especificida- des do texto escrito (organização, estrutura, apresen- tação, etc.) decorrentes da sua função não é imedia- ta. Para isso, é necessário integrar no quotidiano das crianças uma grande variedade de textos e suportes de escrita, como meio de enquadramento e de desenvol- vimento de ações e atividades (Silva, 2016, p. 67).


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Este contacto com uma variedade de funções e diferen- tes suportes de escrita pode surgir ligado a diferentes atividades: “lúdicas ou de lazer (ler livros, legendas de filmes, ler jornais), de apoio à gestão das rotinas do dia-a-dia (lista de compras, cheque), como ainda com um carácter de comunicação (cartas ou recados) ou informativo (cartazes publicitários, mapas, receitas)” (Mata, 2008, p.15).


Aspetos figurativos da linguagem escrita

Hoje, sabe-se que as crianças desenvolvem um con- junto de conhecimentos sobre a linguagem escrita, mesmo antes do ensino formal. Isto acontece devido ao facto de estarem em contacto, mesmo em contex- tos informais, com outras crianças e adultos que uti- lizam a escrita, pois, como vimos, as “descobertas das crianças acerca da literacia numa sociedade letrada como a nossa começam muito antes da idade escolar.” (Goodman, 1984, p. 102) Os contactos que têm com

a escrita, sendo mediados por adultos ou por outras crianças, têm um papel crucial no desenvolvimento das conceções e dos conhecimentos sobre a linguagem escrita de que as crianças se apropriam. Os conheci- mentos das crianças acerca dos aspetos figurativos da linguagem escrita, antes da entrada para a escola, têm uma grande importância na forma como apren- dem a ler e a escrever.

Contudo, aprender a ler e a escrever requer a apropria- ção de um conjunto importante de convenções: “As crianças desde cedo vão-se questionando e colocando hipóteses sobre a escrita, as suas características, as suas utilizações, em que contextos funciona, as regras que as regem, etc.” (Mata, 2008, p. 33) Efetivamente, as crianças adquirem, desde cedo, diversos conheci- mentos sobre a linguagem escrita, no seu dia a dia, ao contactarem informalmente com a escrita enquanto complemento à linguagem oral. Mata (2008, p. 9) diz-

-nos ainda que


Isto decorre do facto de as crianças interagirem, mes- mo em contextos informais, com outras crianças e adultos que utilizam a escrita, e de serem aprendizes activos, que constroem conhecimentos sobre o mun- do, à medida que exploram o meio envolvente e reflec- tem sobre as suas explorações.


De facto, as relações que as crianças têm com a escri- ta, sejam estas intermediadas por adultos ou por ou- tras crianças, têm um grande impacto no desenvolvi- mento das concetualizações e dos conhecimentos de que se apropriam sobre a linguagem escrita. Assim, para Mata (2008, p.33), “é necessário identificá-los e compreendê-los para se poder agir adequadamente e para que as crianças consigam aprender a ler e escrever sem problemas.”

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Em contexto pré-escolar, um dos principais aspetos em que se manifesta a tentativa de produção escrita por parte das crianças é o tipo de representação da escrita utilizado. Podem surgir desenhos, garatujas, ou caracteres diferenciados, tendo estes muitas vezes formas “tipo letra”, surgindo gradualmente algumas letras, mesmo que não estejam orientadas convencio- nalmente. Tal como indica Silva (2016: p. 70), “[n]este processo emergente de aprendizagem da escrita, as primeiras imitações que a criança faz do código escrito tornam-se progressivamente mais próximas do mode- lo, podendo notar-se tentativas de imitação de letras e até a diferenciação de sílabas.” Deste modo, normal- mente as primeiras produções escritas das crianças surgem em forma de desenho e evoluem para gara-

tuja, símbolos, ortografia inventada e aproximações à escrita convencional. Horta (2015, p. 100) refere que


importa que a criança seja assistida por um educador atento às suas diferentes fases de desenvolvimento (a nível da linguagem escrita), designadamente através do interesse que revela por esta forma de comunica- ção, ajudando-a a evoluir nas suas conceções precoces sobre este tipo de linguagem.”


Neste âmbito, a identificação dos aspetos figurativos pode dar alguma informação sobre o tipo de carac- terísticas percetivas/gráficas de que a criança já se apercebeu no que diz respeito à escrita. Ao identificar as características concetuais da linguagem escrita, consegue-se igualmente compreender de que forma a criança integra todos os conhecimentos e característi- cas que atribui à escrita. Assim, ao passo que os aspe- tos figurativos são passíveis de ser identificados atra- vés da observação das produções escritas das crianças, para se compreender as conceptualizações das crian- ças, é importante conversar com elas, questioná-las e tentar entender os motivos das suas opções de escrita. Quanto aos aspetos figurativos, os mais frequente- mente observados são, segundo Mata (2008, p. 34): “o tipo de caracteres utilizados, a orientação da escrita, a aproximação gráfica à escrita convencional, não só pela mobilização de letras como pela sua variedade, e a existência de espaços entre as sequências de caracte- res utilizados.”

Fijalkow (1989, 1993) levou a cabo estudos sobre a for- ma como as crianças de idade pré-escolar perceciona- vam um conjunto de termos utilizados vulgarmente na aprendizagem da leitura/escrita, como sejam a direc- cionalidade da leitura/escrita, letra, número, palavra, frase, linha, título e autor de uma história (Martins & Niza, 1998, p. 61). Assim, verificou-se que as crianças em idade pré-escolar, apesar de, em geral, serem capa- zes de diferenciar a escrita convencional das garatujas, tendem a confundir letra com palavra, e frase com li- nha.

Para que a criança tenha um avanço em termos con- ceptuais, é importante que haja uma compreensão dos princípios, por vezes não convencionais, que a apoiam no seu progresso. Contudo, isto só é possível se as crianças se envolverem em atividades reais de escrita, com significado para as mesmas, em que elas testem as suas hipóteses sobre a escrita e mediante as quais sejam confrontadas com discrepâncias e conflitos cog- nitivos que as façam reorganizar as suas hipóteses e, consequentemente, evoluir nas concetualizações.

Como vimos, uma das formas de tentar compreender os conhecimentos e as conceções das crianças consis- te em analisar as suas produções escritas, que podem partir quer de experiências realizadas pela própria criança, quer de propostas de escrita que lhe são fei- tas. Nesta lógica, tal como refere Mata (2008), a aná- lise das produções escritas pode ser feita ao nível do seu aspeto gráfico (aspetos figurativos ligados aos ca- racteres utilizados, orientação, etc.) mas também se podem identificar as conceções das crianças sobre a linguagem escrita ao nível das suas concetualizações (aspetos concetuais). Neste caso, procura-se caracteri- zar as hipóteses (ideias e conceções) que sustentam as suas produções escritas, a sua natureza, as suas carac- terísticas e os processos de construção que lhes estão subjacentes questionando-as justamente sobre como acham que se escreve, como fazem para escrever, etc.


Aspetos conceptuais da linguagem escrita

As produções escritas das crianças podem ser analisa- das ao nível dos aspetos funcionais, figurativos e con- cetuais da linguagem escrita, como acima vimos. Se os aspetos figurativos estão ligados às características formais associadas ao ato de leitura, aos caracteres utilizados e às regras convencionais da escrita, já os aspetos concetuais procuram caracterizar as hipóte- ses das crianças que sustentam as suas produções, assim como os processos de construção que lhes estão subjacentes.

Numa fase inicial, as crianças começam por diferen- ciar desenho de texto: segundo Ferreiro e Teberosky (1986, p. 52), “(a) maioria das crianças faz uma dis- tinção entre texto e desenho indicando que o desenho serve “para olhar” ou “para ver” enquanto o texto ser- ve “para ler”.

As primeiras tentativas de escrita das crianças em ida- de pré-escolar consistem na produção de símbolos que já não são desenhos, mas que também não são letras convencionais: são grafias que se parecem com letras. Com o tempo, a criança irá perceber que existem mais tipos de sinais gráficos, para além dos desenhos: no- meadamente as letras e os números. Inicialmente, no entanto, usam-nos indistintamente.

A evolução dos conhecimentos das crianças em rela- ção à linguagem escrita é descrita por Ferreiro e Tebe- rosky (1980) através de três níveis evolutivos, relativos às conceções das crianças sobre o sistema da escrita. Neste trabalho, para efeitos de caracterização da es- crita das criança, serão considerados os quatro níveis apresentados por Martins & Niza (1998): escrita pré-

-silábica, escrita silábica, escrita com fonetização e

escrita alfabética.


Escrita pré-silábica

Neste nível, segundo Martins e Niza (1998, p. 66), “(a) escrita ainda não é determinada por critérios linguís- ticos”. A nível gráfico, as crianças já são capazes de utilizar letras, pseudo-letras ou algarismos para es- creverem. Recorrem a um número fixo de grafemas para a escrita de diversas palavras e fazem-nos variar de palavra para palavra ou trocam-lhes as posições.

Na escrita da frase, os grafemas sucedem-se sem es- paços, sendo a leitura das palavras feita de forma glo- bal. A mesma palavra, escrita isoladamente e escrita na frase, compõe-se de elementos gráficos diferentes. Regra geral, a criança recusa a tarefa de assinalar as diversas palavras na frase e, quando a aceita, assina- la-as de uma forma vaga.


Escrita silábica

No segundo nível, “(a) escrita já é orientada por cri- térios linguísticos; a unidade do oral representada na escrita é a sílaba; a escolha das letras para represen- tar as sílabas é arbitrária.” (Martins & Niza, 1998, p. 68) Do ponto de vista gráfico, as crianças fazem uso de letras variadas para a escrita de palavras, normal- mente, uma letra por sílaba. Nesta fase, as crianças variam as letras no interior de cada palavra e de pala- vra para palavra. Na escrita da frase, uma letra pode representar uma palavra ou uma sílaba. Em alguns casos, a mesma palavra é escrita de formas diferen- tes, compondo-se de diferentes elementos gráficos ou não. Do ponto de vista da identificação das palavras na frase, as crianças assinalam, de forma coeren- te, algumas palavras na posição em que ocorrem na frase, mas outras são assinaladas equivocadamente como estando ligadas.


Escrita com fonetização

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No terceiro nível, de acordo com Martins e Niza (1998, p. 70), “(a) escrita é orientada por critérios linguísticos; a análise do oral pode ser silábica ou ir além da síla- ba, chegando mesmo ao fonema (escrita alfabética); as letras escolhidas não são arbitrárias” (Martins & Niza, 1998, p.70). Nesta fase, a escrita é orientada por critérios linguísticos, em que a escolha de letras para representar os sons do oral não é arbitrária. No entan- to, nem todas as crianças têm a capacidade de produzir uma escrita alfabética: existe uma variação entre escri- ta alfabética e silábica, sendo que a escolha das letras já não é aleatória, pois já se evidencia alguma capacidade de associar o grafema a um dos fonemas da sílaba.

No que diz respeito aos procedimentos de identificação das diversas palavras na frase, as crianças assinalam de forma coerente algumas palavras na posição em que ocorrem na frase, exceto no caso dos artigos, que são considerados como estando fundidos com os substan- tivos.


Escrita alfabética

Este quarto nível refere-se à escrita alfabética, numa fase de aprendizagem em que as crianças realizam uma análise fonémica das palavras e selecionam as letras adequadas para representar todos os fonemas. No entanto, tal como referem Martins e Niza (1998, p. 74), “nem todas as crianças produzem uma escrita alfabética.”


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Metodologia

Foi nosso objetivo analisar a forma como os registos obtidos em torno das práticas de literacia emergente, desenvolvidas em contexto de prática de ensino super- visionada, junto de crianças de 5 e 6 anos, permitiram recolher evidências sobre as diferentes fases em que as crianças se encontravam, em termos de conceções precoces sobre a linguagem escrita. Partindo de uma amostra constituída por oito crianças de uma sala de cinco e seis anos, foi preparado um guião de entrevis- ta para avaliação das conceções precoces sobre a lin- guagem escrita, o qual esteve na origem dos registos das produções escritas das crianças, bem como do le- vantamento acerca das funcionalidades que estas atri- buíam à linguagem escrita.


AMOSTRA

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O grupo de crianças em contexto de Educação Pré- Escolar junto do qual foi desenvolvida a intervenção era constituído por oito crianças que frequentavam uma sala com idades compreendidas entre os 5 e os 6 anos de idade, numa instituição de contexto Pré- escolar situada no Grande Porto. No que concerne à sua idade, cinco crianças tinham cinco anos e três delas tinham seis anos de idade. Das oito crianças, apenas uma era do sexo masculino.

No quadro abaixo, apresentamos a caracterização da nossa amostra:

Quadro 1 – Caracterização da amostra


Género/ Idade

5 anos

6 anos

Total

Feminino

4

3

7

Masculino

1

0

1

Total

5

3

8


A recolha dos dados relativos ao contexto de intervenção teve lugar durante o 2.º período de estágio, no âmbito da Prática de Ensino Supervisionada integrada no mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º Ciclo, o qual decorreu nos meses de maio e junho de 2022, num Jardim de Infância na zona do Grande Porto. A fim de avaliar o nível de familiaridade que estas crianças manifestavam relativamente a vários aspetos relativos à literacia emergente, foi preparado um instrumento de recolha de dados - concretamente um guião de entrevista - para avaliação das conceptualizações precoces sobre a linguagem escrita, que esteve na origem das produções escritas das crianças. Foi também efetuado, junto de cada uma das crianças, um levantamento acerca das funcionalidades que estas atribuíam à leitura e à escrita. Tentou-se assegurar as condições de silêncio necessárias para a aplicação destes instrumentos, sendo que todas as crianças foram entrevistadas, individualmente, ao final da tarde (o que se verificou ser o melhor momento do dia para a concentração necessária para a aplicação dos instrumentos).


PROCEDIMENTO PARA IDENTIFICAÇÃO DAS CONCETUALIZAÇÕES SOBRE A LINGUAGEM ESCRITA

Para a análise relativa às concetualizações das crianças acerca da linguagem escrita, cada criança foi convidada a escrever, como soubesse, cinco palavras: gato, gata, gatinho, formiga e cavalo. Após a produção escrita realizada pela criança, foi solicitado a cada uma que realizasse a leitura oralizada do que tinha escrito e que assinalasse, com o seu dedo, as diferentes unidades, procurando explicar por que razão tinha escrito dessa forma. Pretendia-se assim identificar quais os critérios utilizados para a realização de todo o processo. Esta prova foi baseada no estudo de Martins (1996), bem como nos trabalhos de Ferreiro e Teberosky (1980) e de Ferreiro e Palácio (1988).

As primeiras palavras (gato, gata e gatinho) são linguisticamente próximas e têm o mesmo referente, tendo as duas primeiras a mesma extensão silábica, contrastando com a última (gatinho) ao nível do

número de sílabas e de grafemas (extensão da palavra). As duas últimas palavras selecionadas (formiga e cavalo), apesar de terem o mesmo número de sílabas, remetem-nos para animais de dimensões diferentes, o que nos permitiu perceber se a criança ainda raciocinava em função do tamanho do referente ou já era capaz de processar a palavra em função da sua extensão (escrita/lida).

As produções escritas das crianças e os seus comentários ao processo foram classificados em quatro níveis evolutivos, de acordo com as conceções precoces sobre o processo de escrita, tendo por base os mesmos critérios de um estudo realizado por Martins (1996): escrita pré-silábica, escrita silábica, escrita com fonetização e escrita alfabética.


PROCEDIMENTO PARA IDENTIFICAÇÃO DAS FUNCIONALIDADES DA LEITURA E DA ESCRITA RECONHECIDAS

Com o objetivo de avaliar que funções e utilizações as crianças atribuíam à leitura e à escrita, estas foram individualmente questionadas recorrendo, para o efeito, a um guião baseado na investigação de Martins (1996). Este era constituído por seis questões, a saber:


  1. Gostavas de aprender a ler e a escrever?

  2. Para que queres aprender a ler e a escrever?

  3. Para que achas que serve saber ler?

  4. O que se pode fazer quando se sabe ler?

  5. Quando já souberes ler, o que gostarias de ler?

  6. Quando já souberes escrever, o que gostarias de escrever?


As respostas das crianças às questões colocadas foram objeto de análise de conteúdo, de forma a identificar as funções e utilizações que as mesmas já reconheciam na leitura e na escrita.


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Resultados e sua Análise

ANÁLISE DAS CONCEPTUALIZAÇÕES SOBRE A LINGUAGEM ESCRITA


Na tabela abaixo, apresentamos o resultado da análi- se das produções das crianças quanto às concetualiza- ções sobre a linguagem escrita, tendo em conta a sua distribuição por faixas etárias:


Tabela 1 – Concetualizações sobre a linguagem escrita e sua distribuição em função da faixa etária


Idade

Escrita pré-silábica

Escrita silábica

Escrita com fonetização

Escrita alfabética

Total

5

anos

2

1

2


0%

5

40,0%

20,0%

40,0%

6

anos

1


2

3

33,3%

66,7%


37,5%

12,5%

50,0%

0%

100%


A sua leitura permite verificar que, das oito crianças, três produziram escrita pré-silábica. Como vimos, nesta etapa, a escrita ainda não é orientada por cri- térios linguísticos e pode não haver verbalizações du- rante o momento da sua produção. Quanto ao aspeto gráfico, as crianças recorrem a letras, pseudoletras ou mesmo números para escrever. Este tipo de escrita foi observado, por exemplo, na produção apresentada na figura 1, que evidencia a ausência de relação entre a linguagem escrita e a linguagem oral.


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Figura 1 – Exemplo de produção escrita identificada como escrita pré-silábica


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Verificámos ainda que a maioria das letras utilizadas pela criança eram as que constavam do seu nome, de- vido ao seu reduzido repertório, o que constitui outra das características do nível pré-silábico.

No nível de escrita silábica, já existe uma tentativa de estabelecimento de correspondência entre o oral e es- crito. No entanto, a unidade do oral representada na escrita é a sílaba. Das oito crianças observadas, apenas uma produziu escrita silábica. As produções escritas desta criança foram consideradas silábicas, apesar de esta ainda utilizar escrita pré-silábica, nas primeiras três palavras. É o que se pode observar na figura abaixo:


Figura 2 – Exemplo de produção escrita identificada como escrita silábica


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Efetivamente, nas três primeiras palavras, a lingua- gem escrita ainda não estava relacionada com a lin- guagem oral, à exceção da palavra “gato”, na qual se identifica a presença da sílaba “GA”. Além disso, a lei- tura destas três palavras foi feita de forma global. No entanto, nas últimas duas palavras (“formiga” e “ca- valo”), a leitura das palavras foi silabada e já foi pos- sível identificar tentativas de correspondência entre o oral e o escrito: na palavra “formiga” (“AIG”), a letra “I” na leitura da criança representava a sílaba “mi” e a letra “G” a sílaba “GA”. Da mesma forma, na palavra “cavalo”, a letra “C” foi associada à sílaba “Ca”, a letra “P” à sílaba “va” e a letra “U” à sílaba “lo”.

Na escrita com fonetização, tal como na escrita silábi- ca, a escrita é orientada por critérios linguísticos, mas

a escolha das letras que representam os vários sons já não é arbitrária. Das oito crianças, quatro, ou seja, metade da população do estudo, produziram escritas em que se observou já um começo de fonetização.

Vejamos a transcrição da entrevista de uma dessas crianças:


Estagiária: Escreve a palavra “gato”.

CV: GA-TO, esta é fácil porque já escrevi nos desenhos.

Estagiária: Agora, escreve “gata”.

CV: (Escreve “GAT”) eu acho que tem um “A” aqui. (Diz a palavra algumas vezes alto e acrescenta a letra “A” depois da letra “T”).

Estagiária: Agora a palavra a escrever é “gatinho”.

CV: Gatinho? Vai ser tudo sobre gatos?

Estagiária: Não, as próximas não têm nada relaciona- do com gatos.

CV: (Escreve “GIT”)

Estagiária: Queres ler o que escreveste aí?

CV: GA (aponta para o G), TI (aponta para o I), NHO (aponta para o T)

Estagiária: Agora a palavra para escrever é “formiga”. CV: (parou para pensar) Formiga, formiga, formiga. (Escreve RIA)

Estagiária: O que escreveste aí?

CV: (Aponta para o R) Forrr (carrega no R), Miii (apon- ta para o I), GAAA (aponta para o A). Formiga tem le- tras iguais às do meu nome, eu tenho essas também. Estagiária: Agora vais escrever “cavalo”.

CV: Cavalo? (escreve CAU)

Estagiária: Queres ler o que escreveste?

CV: CA (aponta para o C), VA (aponta para o A), LO (aponta para o U)

A correspondente produção escrita pode ser observada na figura abaixo:


Figura 3 – Exemplo de produção escrita identificada como escrita com fonetização


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Na escrita desta criança, já há uma tentativa de fone- tização, pois, apesar de a análise efetuada sobre o oral não contemplar ainda todos os fonemas, esta já apre- senta um por sílaba. Excetua-se o caso das palavras “gato” e “gata”, que já apresentam as sílabas comple- tas. As correspondências estão sempre corretas, à ex- ceção da utilização da letra “u” para representar a letra “O”. Contudo, a solução encontrada para representar a vogal presente na última sílaba constitui uma solução bastante interessante de representação do som por par- te da criança. A leitura de palavras tem em conta a sí- laba, tal como se observa na transcrição da entrevista.


ANÁLISE DAS APROPRIAÇÕES DAS UTILIZAÇÕES FUNCIONAIS DA LEITURA E DA ESCRITA


Tal como foi explanado anteriormente, esta prova par- tiu de um guião de entrevista com questões colocadas às crianças, tendo sido feita a análise de conteúdo das respostas dadas por cada uma.

Em relação ao tipo de respostas dadas pelo grupo de crianças, foram identificadas três categorias e quatro subcategorias. Assinalámos respostas que remetiam:

i) para a leitura e escrita de livros, histórias e teatros, (ex. “Podemos ler histórias, podemos fazer teatros, podemos escrever borboleta. Podemos ler teatros e brincar com histórias”), ii) para a leitura e escrita de cartas, (ex. “Para quando eu for grande já poder ler e

escrever cartas…”), iii) para a leitura e escrita de no- mes (ex.: “…o nome da minha amiga Félix.”), iv) para a leitura e escrita de trabalhos da escola (ex. “Posso escrever os trabalhos da escola como a minha irmã.”) e ainda outras referências de leitura e escrita (ex. “… porque assim eu podia ser professora, podia ser vete- rinária.”)

Na tabela abaixo, apresentamos os resultados da aná- lise efetuada:


Tabela 2 – Razões invocadas pelas crianças da amostra para quererem aprender a ler e a escrever


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Razões invocadas para aprender a ler e a escrever

Ler histórias/livros

10

33,3%

Escrever teatros

1

3,3%

Posso ser professora

1

3,3%

Posso ser veterinária

1

3,3%

Para ser inteligente

1

3,3%

Ler teatros

1

3,3%

Trabalhos da escola

7

23,3%

Para aprender

1

3,3%

Inventar uma história

1

3,3%

Escrever nomes

1

3,3%

Ler cartas

1

3,3%

Números e letras

1

3,3%

Escrever sem copiar

2

6,7%

Ouvir música

1

3,3%

TOTAL

30

100,0%


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As respostas mais frequentes (com 33,3%) foram as relativas à leitura de livros e histórias. De seguida, as respostas mais frequentes foram as que remetiam para a realização de trabalhos da escola, com 23,3% de menções. Segue-se, com uma percentagem de 6,7%, o querer aprender a escrever sozinho sem ter de copiar. As restantes razões referidas, de caráter variado, apre- sentam uma percentagem de 3,6%: escrever teatros, poder ser professora, poder ser veterinária, para ser inteligente, ler teatros, para aprender, inventar histó- rias, escrever nomes, ler cartas, escrever os números e letras, e ouvir música.

É de assinalar o facto de a maior parte das crianças referir motivações intrínsecas de caráter recreativo, como seja o gosto pelas histórias, que é alimentado pelas práticas de jardim de infância e também, cer- tamente, pelo contexto familiar. A quantidade de respostas que remetem para a realização de trabalhos de casa constitui outra motivação que revela já a ca- pacidade de associar a leitura e a escrita ao contexto

escolar e a motivações não meramente recreativas, decorrentes muito provavelmente do contacto que es- tas crianças têm com modelos de leitores e escritores como sejam os proporcionados por irmãos mais ve- lhos, em idade escolar. É ainda curioso notar que há crianças que conseguem reconhecer, no domínio da leitura e da escrita, a porta de acesso para capacidades e projetos de vida, como sejam o exercício de uma pro- fissão ou aprendizagens de caráter variado.


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Considerações Finais

O trabalho aqui apresentado, tendo como objetivo ve- rificar de que forma os registos das ações e do discurso de crianças em idade pré-escolar, em torno de ten- tativas de escrita informavam sobre o seu desenvol- vimento, proporcionou, por um lado, às crianças, a oportunidade de produzir hipóteses e significados sobre essas mesmas tentativas e, por outro, à educa- dora estagiária, a oportunidade de revisitar tais pro- dutos, analisando-os e refletindo sobre o significado dos mesmos.

Efetivamente, a valorização das concepções precoces sobre a linguagem escrita, que neste trabalho se pre- coniza, quer do ponto de vista das suas funcionalida- des, quer dos aspetos figurativos, quer ainda dos as- petos concetuais, encontra nesses registos um instru- mento fundamental, sem o qual tais concepções difi- cilmente poderiam ser desocultadas. As relações que as crianças (man)têm com a linguagem escrita, por mera interação com os seus pares ou por intermédio de atividades orientadas por adultos, têm impacto no desenvolvimento das suas concetualizações e na cons- trução dos significados que atribuem à linguagem es- crita. Estes registos constituem, para além disso, um instrumento avaliativo para o educador, permitindo-

-lhe considerar diferentes dimensões do desenvolvi- mento e das aprendizagens infantis e, em função das mesmas, reorientar as suas práticas pedagógicas de forma a proporcionar, a todas as crianças, adequadas e desafiantes oportunidades de expressão sobre a for- ma como se vão apropriando da linguagem escrita en- quanto parte integrante do mundo que as rodeia.

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Por fim, estes mesmo registos desempenham igualmente um importante papel na formação de professores e educadores, no sentido em que, quando entendidos como elementos da documentação pedagógica, com uma intencionalidade própria, permitem olhar para a relação pedagógica de forma dinâmica, como “um exercício de curiosidade respeitosa, ética e responsável; de investigação paciente, amorosa e articulada; de leituras hipotéticas […] e que transformem em parceiros de aprendizagens esses sujeitos que se dão a conhecer, que querem se conhecer e querem conhecer e amar o conhecimento.” (Ceron & Junqueira, 2017, p. 221)


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Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito dos projetos do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho) com as referências UIDB/00317/2020 e UIDP/00317/2020. A primeira colabora ainda com o Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.