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O PODER DAS PALAVRAS RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE ATIVIDADES DE TEMPO LIVRE E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA

Carina Coelho

Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto

Maria José Araújo

Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto

António Guedes

1

Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto


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Resumo:


O ‘Poder das Palavras1foi um projeto de intervenção co- munitária no Tempo Livre, desenvolvido numa comu- nidade socioeducativa da cidade do Porto. O objetivo era criar oportunidades de diálogo com diferentes ge- rações de famílias, em situação pandémica provocada pelo Covid19. Foram potenciadas diferentes formas de comunicação de que salientamos as redes sociais, nomeadamente WhatsApp, como forma de interação com grandes possibilidades nos contextos familiares, mas também, nos contextos associativos e relacio- nais. Neste artigo, descrevemos esta experiência, re- fletindo sobre a educação de adultos e as práticas de lazer no tempo livre, mediadas pelas TIC, potenciando a educação como “prática de liberdade” tal como pro- punha Paulo Freire.


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Palavras-chave:

Tempo livre; Intervenção Comunitária; Educação de Adultos; TIC; Sociabilidade.

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Abstract:


The ‘Power of Words’ was a community intervention project in Free Time, developed in a socio-educational community in the city of Porto. The aim was to create opportunities for dialogue with different generations of families in a pandemic situation caused by Co- vid19. Different forms of communication were used, including social networks, particularly WhatsApp, as a form of interaction with great possibilities in fa- mily contexts, but also in associative and relational contexts. In this article, we describe this experience, reflecting on adult education and leisure practices in free time, mediated by ICT, fostering education as a “practice of freedom” as Paulo Freire proposed.


Keywords:

Leisure Time; Community Intervention; Adult Education; ICT; Sociability.


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1 – Por questões de sigilo e proteção de dados mantivemos o anonimato do projeto e das instituições envolvidas.


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DATA DE SUBMISSÃO: 2023/10/02 DATA DE ACEITAÇÃO: 2023/12/15 DOI: 10.25767/SE.V32I2.32986


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Introdução

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O texto que aqui apresentamos tem como objetivo dar a conhecer as possibilidades da intervenção comuni- tária através das tecnologias de informação e comuni- cação (TIC) em contexto pandémico. Tratou-se de um projeto que seguiu os pressupostos da Investigação-a- ção participativa aplicada ao ambiente online. Uma metodologia de trabalho que considerou as particu- laridades do contexto e da imprescindível e progres- siva identificação dos participantes com o projeto, de forma que o sentissem como seu (Brites, Santos & Ca- talão: 2015). Dado que o texto é predominantemente narrativo os propósitos de trabalho que caracteriza- ram o projeto, vão sendo explicitados nos diferentes tópicos do texto. As palavras como possibilidade de co- municação com o outro, “conseguem atuar no mun- do e, com as suas verdades e mentiras, mudá-lo para sempre” (Vallejo, 2023). Nesta ordem de ideias, Freire (1967) lembra o valor da oralidade, a propósito de uma educação libertadora. Para tal, é necessário conhecer os vocábulos (os códigos linguísticos) das pessoas com que se trabalha e valorizar as suas experiências e usos. E, “esta questão não é somente uma questão pedagó- gica” (Freire, p.47).

A questão da participação e usufruto do Tempo Livre tem vindo a ser muito discutida justamente a propósi- to da cidadania. Tempo livre, enquanto direito, é todo o tempo em que escolhemos o que fazemos. Para tal, é preciso ter condições de usufruto. Não basta ter di- reitos, é preciso ter condições para o exercício desses mesmos direitos para os conseguir usar. Tal perspeti- va, como sabemos, vai muito além da mera discussão legal para se poder tornar numa realidade, questão essencial na medida em que é na prática efetiva dos direitos legais, civis, políticos, culturais e económi- cos que o exercício da cidadania se concretiza. Um dos desafios que se coloca aos educadores, animadores e outros profissionais que se dedicam à intervenção na comunidade, prende-se com a possibilidade de olhar para as pessoas como cidadãos de pleno direito. Nesse sentido, é preciso criar debate e visibilizar as suas roti- nas, ajudando-os a superar os constrangimentos com que se deparam. Paralelamente, é preciso considerar as pessoas como produtoras de conhecimento, atores sociais com voz própria e não como espectadoras do mundo em que vivem (Araújo, 2019).

Como refere Gorz (1988), o processo de partilha das ex- periências, desenvolve a sociabilidade e a solidarieda- de e cria bem-estar, mas tal supõe um contexto que

favoreça o diálogo, as trocas, as iniciativas e as prá- ticas comuns, assim como a apropriação de espaços comuns; que favoreça a livre e equitativa expressão de todos os participantes. É, refere o autor, na experiên- cia das atividades micro-sociais que podemos falar de direitos e deveres e é somente quando se é reconhecido como membro de pleno direito, que se intensificam os processos relacionais. Assim, a cooperação solidária é a base por excelência da integração social e da produ- ção de laços sociais. Nesse sentido, abraçar projetos de investigação-ação participativa e criar condições de trabalho colaborativo, constitui-se como uma pos- sibilidade de grande potencial para a intervenção co- munitária. Mas, para que as atividades de tempo livre sejam significativas e cumpram o seu objetivo, têm de ser pensadas com as pessoas e não para elas. É neste sentido que este projeto se mostrou de grande mais-va- lia para os/as participantes, como mostraremos mais abaixo neste texto. Toda a reflexão foi apoiada em di- ferentes autores, mencionados na bibliografia, que se têm dedicado quer à Educação de Adultos, quer à Inter- venção Comunitária, quer ao Lazer no Tempo Livre.


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O Poder das Palavras: sociabilidade

e solidariedade

O grupo, que fazia parte deste projeto, foi constituído a partir de um primeiro levantamento de dados junto de famílias da comunidade, sobre a comunicação e a interação com os profissionais das instituições educa- tivas de diferentes valências (creche, Jardim Infância, ATL, e agrupamentos de escolas). Procurávamos criar condições para que estes diferentes atores e agentes educativos refletissem em conjunto sobre as práticas lúdico pedagógicas que usavam nas atividades que de- senvolviam.

As práticas educativas, promotoras de bem-estar, em contexto familiar são muito diversas e dependem da compreensão do significado das diferentes culturas e dinâmicas de vida quotidiana de cada grupo. Como refere Ferreira da Silva (2001) para que haja mudanças de âmbito e interesse familiar é necessário ser agente de mudança. Nesta ordem de ideias revelou-se fun- damental a otimização de recursos que poderiam per- mitir o diálogo entre diferentes famílias: debatendo constrangimentos, potencialidades e ações comuns, de forma que se apropriassem dos recursos disponibi- lizados pelas redes sociais, institucionais e associati- vas. Por outro lado, o impacto das TIC nas dinâmicas familiares têm sido um tópico de interesse nos estudos sociais da família para se compreenderem as diferen- tes oportunidades de aprendizagem potenciadas pelas TIC (Casimiro e Neves, 2021). Os estudos da família, na perspetiva destes autores, evidenciam que os contex- tos de usos das TIC dependem de fatores culturais, so- ciotécnicos e de circunstâncias específicas que podem oferecer quer oportunidades, quer dificuldades, quer desafios (Casimiro e Neves, 2021). No caso deste proje- to de intervenção, o debate sobre estas questões cons- tituiu-se como uma oportunidade, desde logo porque o grupo era constituído por pessoas de diferentes gera- ções que aprendiam umas com as outras.

Após a recolha de manifestações de interesse, o grupo integrou encarregadas de educação (sobretudo mulhe- res), profissionais e estagiários do Curso Técnico Su- perior Profissional de acompanhamento de crianças e jovens da ESE P. Porto, para além de outros colabora- dores de instituições locais.

Este grupo de cuidadoras preocupava-se com o bem-

-estar das crianças e jovens, mas também com o bem-

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-estar de quem cuida delas. Partilhavam saberes e ex- periências e pretendiam ultrapassar juntas obstáculos criados pelas dificuldades provocadas pelo isolamen- to/confinamento. No apelo à participação de mais elementos da comunidade, o grupo considerou funda- mental valorizar a oralidade, a conversa, assim como, a disponibilidade para a escuta, a troca de ideias e a valorização das relações interpessoais. Dado o contex- to, os encontros foram maioritariamente online e o ambiente de confraternização pautou-se pela criação de atividades passiveis de realização não presencial. A escolha do nome do projeto teve na sua base a in- tenção de destacar a dimensão relacional e do cuida- do subjacentes ao ato de comunicar, valorizando o poder das palavras (a oralidade), sobretudo em con- texto de confinamento e de como esta é basilar aos processos de fortalecimento do sentido de comuni- dade. A comunicação implica uma intenção genuína de escuta, não só do que o outro diz, mas da pessoa que fala. Importar-se com a pessoa que fala implica a predisposição para conhecer e compreender que qual- quer individuo tem diferentes papéis de acordo com o seu contexto de vida, saberes e experiências pes- soais e profissionais muito diversos (Araújo, 2020). A predisposição para a escuta, a forma como falamos e como vemos as coisas é, como refere Berger (2018), afetada pelo que conhecemos e/ou por aquilo em que acreditamos. Do ponto de vista metodológico foi va- lorizada a interação lúdica por nos aproximar e cria um ambiente propício à troca de conhecimento. O diálogo, neste sentido, pressupôs disponibilidade e abertura que não se conseguiria sem a construção de uma relação de respeito e de confiança entre as partes.


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A boa conversa como expressão do tempo livre na comunidade

Não existe nada de mais razoável do que apostar numa boa conversa, como refere Stevenson (2018). A arte da conversa é ainda mais necessária quando as mudanças sociais e educativas são intensas e incertas. “Falar é a arte que devemos praticar e aperfeiçoar toda a vida de forma que possamos explicitar os nossos pontos de vis- ta sem arrogância” (Vallejo, 2023:26). As palavras não se usam somente para expressar pensamentos e emoções, mas originam e produzem essas emoções para criar bem-estar. A arte da conversa, lúcida e generosa, ilustra qualquer assunto não só para passar o tempo, nas fes- tas ou encontros casuais, mas também, para partilhar conhecimento em encontros, simpósios ou seminários. Nestes encontros, muitas vezes, a conversa nos mo- mentos de pausa para café tem significados tão ou mais importantes que outros momentos mais formais. “Não há lei que chegue ao Parlamento sem que antes tenha sido preparada pelo grande júri dos conversadores. A literatura não é senão a sombra de uma boa conversa” (Stevenson, 2018, p.37). As pessoas conversam dando e recebendo, comparando e partilhando experiências. En- quanto a escrita permanece fixa e idolatrada por quem escreveu, a conversa expande-se. A leitura é uma boa prática para os momentos de lazer no tempo livre, que deve ser incentivada e valorizada, mas à medida que fala a pessoa tenta melhorar o seu discurso, aprende e valoriza novas formas de comunicar: performances, anedotas, histórias que permitem o riso e o bem-estar. Enquanto prática de lazer no tempo livre, este tipo de comunicação expandiu-se junto das participantes do projeto como “contadoras de histórias do quotidiano”, que tinham como público outros atores sociais. “Somen- te através da conversa é possível conhecer o período em que vivemos e a nós próprios” (Stevenson, 2018, p.38). O tipo de relacionamento que a conversa – própria do ser humano – permite, deve ser incentivado. Foi o que aconteceu neste projeto, que agora apresentamos, e que se foi alargando quando no final cada um seguiu o seu caminho com algumas saudades, mas em simultâneo com ânimo para novas e empolgantes conversas em que o poder da palavra atinge o seu máximo.


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Participar é tomar parte, ser parte, trazer parte e levar uma parte

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No desenvolvimento deste grupo privilegiou-se uma metodologia participativa, promovendo os processos de tomada decisão coletiva, entre as famílias e profis- sionais da educação: debateu-se o interesse da criação do grupo; a escolha do nome; a definição dos objeti- vos; a periodicidade dos encontros online; as ativi- dades a realizar e a própria dinamização das sessões (cada participante foi responsável pelo menos pela di- namização de uma das sessões), entre outras questões que iam aparecendo passiveis de decisão e conversa coletiva. “É nos espaços das comunidades locais que os atores encontram possibilidades de reclamação de participação e de partilha de poder, particularmente, na tomada de decisão conjunta sobre esses mesmos espaços e no delinear de ações a desenvolver” (Trevi- san, 2009, p.4).

A participação como refere Nunes (2021) pode ir desde um conjunto de ações que parecem rotineiras ou tri- viais, mas que são indispensáveis no quotidiano para o funcionamento de formas básicas de sociabilidade, até formas de participação que muitas vezes não são con- sideradas, mas que são formas de envolvimento que gera participação, como é o caso das atividades artís- ticas e culturais, de tipo expressivo. A participação em fóruns online ou em situações do género, foi crucial no contexto de confinamento não só pela possibilidade de envolvimento e diálogo, mas porque, curiosamente, se mostrou uma prática de resistência. A compreensão do significado de participação é ampla e diversificada e em comunidade é essencial (Nunes, 2021, p.21).

Num primeiro momento as atividades do projeto de- senvolveram-se exclusivamente em ambiente virtual, através da interação do grupo na multiplataforma WhatsApp e momentos síncronos semanais na mesma plataforma; num segundo momento, presencialmen- te, alargou as suas interações noutros espaços da co- munidade nomeadamente no agrupamento de escolas. A dinâmica do grupo, nos momentos síncronos ou presenciais, organizou-se em função de quatro tipo- logias de sessão:

Incluiu ainda outras atividades lúdicas como: Histó- rias sem fim – atividade de promoção da comunicação oral, da criatividade e da colaboração entre os elemen- tos do grupo; De quem é este retrato? – atividade de promoção do auto e hétero-conhecimento dos ele- mentos do grupo e fortalecimento das relações entre os mesmos; Comemoração do dia de S. João - atividade intergeracional, com decoração exterior, no bairro, e realização de jogos tradicionais em família.

Foi criado um website que permitiu visibilizar, jun- to da comunidade mais alargada, as atividades que se faziam, mas também, simultaneamente, mobilizar novos grupos e registar a dinâmica que o projeto pro- punha.


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Sessões não síncronas: conversas no WhatsApp

Este espaço de comunicação e de conversa, permitiu manter o interesse e motivação entre as sessões e a to- mada de decisão sobre o grupo, nomeadamente:

Embora em menor grau, serviu também como espaço para o desabafo e a partilha de angústias relacionadas com o stress social dos tempos excecionais que estávamos

a viver, em particular, nas fases de confinamento.

Em suma, o grupo de WhatsApp permitiu o fortaleci- mento da ligação entre os elementos para lá da possi- bilidade de participação nas sessões, ou seja, mesmo que não pudessem estar presentes nas sessões iam acompanhando e participando no desenvolvimento das atividades do grupo. Permitiu que o grupo cons- truísse e mantivesse uma dinâmica ativa e interes- sante, possibilitando que cada elemento se sentisse à vontade para responder a qualquer questão que sur- gisse e avançar com propostas. O grupo apropriou-se desse espaço efetivamente como sendo seu, assumin- do-se cada elemento como autor do mesmo.

Nesta experiência testemunhou-se o modo como as novas formas de interação mediadas pelas TIC podem facilitar uma comunicação de tipo bidirecional e par- ticipativo, e constituir um importante meio de me- diação e inclusão sociocultural (Ferreira & Silva, 2022). O uso de equipamentos como smartphones, tablets, computadores portáteis e das crescentes aplicações digitais online disponíveis para os mesmos, ao con- trário de algum receio especulativo, podem promo- ver o estabelecimento e o fortalecimento de relações interpessoais. Na comunicação mediada pelas novas TIC, para além da escrita vão-se desenvolvendo novas formas de linguagem on-line com recurso a elementos pictográficos, e que são enriquecedores da comunica- ção multimodal (Ferreira & Silva, 2022).


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Intervenção comunitária e educação de adultos

Na intervenção comunitária com um grupo de adultos há alguns aspetos importantes a ter em consideração. O primeiro é o de reconhecer as pessoas adultas como sujeitos de experiências e saberes diversos, e valorizá-

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-los independentemente dos contextos em que essas aprendizagens foram realizadas. De facto, aprende- mos continuamente desde que nascemos até que mor- remos. Aprendemos pela experiência e em interação, porque precisamos de sobreviver e de viver uma vida digna, de realização e de bem-estar. De acordo com cada contexto e quotidiano de vida, as nossas apren- dizagens realizam-se informalmente, na relação com outros (sem disso nos apercebermos), formalmente nos contextos institucionais como a escola e ainda quando pretendemos melhorar as nossas competências sobre um qualquer assunto de interesse pessoal e/ou profis- sional. Não aprendemos, pois, só na escola ou institui- ções educativas formais, aprendemos com a família, os amigos, os conhecidos e mesmo com estranhos que va- mos encontrando nos nossos percursos de vida. Na rua, em casa, no trabalho, em organizações sociais, despor- tivas, políticas, recreativas e culturais. No projeto ‘O Poder das Palavras’ promovemos esse reconhecimento através de uma metodologia que privilegiou a tomada de decisão coletiva em que cada participante assumisse o lugar de autor/a do projeto, quer através da dinamiza- ção das sessões, quer das propostas e contributos indi- vidualmente realizados no grupo do WhatsApp.

O segundo aspeto a ter em consideração remete para o caráter voluntário da participação de adultos em projetos de intervenção comunitária. A participa- ção voluntária, característica de muitas situações de aprendizagem, é movida pela expectativa de resposta a necessidades e interesses da própria pessoa, o que, à partida, pode ser preditivo de uma maior implicação e compromisso com o processo educativo, resultando daí benefícios significativos e com efeitos de transfor- mação mais profundos e duradouros (Rothes, Lemos, & Gonçalves, 2019). Uma das potencialidades do proje- to decorreu, do nosso ponto de vista, precisamente do facto da participação ser voluntária, nomeadamente de não estar associada a alguma condição para aceder

ou manter medidas de apoio social, estava quem que- ria e ia quando podia. Na mesma linha, a adesão do grupo de cuidadoras é para nós indicativo de que o pro- jeto respondeu à necessidade eminente das pessoas terem momentos de sociabilidade, lazer e relações de apoio e suporte, em especial no período de confina- mento geral.

Tendo em consideração o que explicitámos mais aci- ma neste texto, especifica e relativamente ao projeto de intervenção ‘O Poder das Palavras’, notou-se que a participação das pessoas diminuiu a partir do fim do confinamento geral, justificado, nas palavras das par- ticipantes, pela dificuldade que a retoma das rotinas trouxe para a possibilidade de continuarem a partici- par nas atividades do grupo, em especial nos encon- tros semanais.

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As dificuldades de conciliação com as ocupações fa- miliares são, efetivamente, uma das barreiras iden- tificadas à participação educativa de adultos. E é uma barreira que se aplica especialmente às mulheres. Na verdade, como refere Corbain (2001), o uso de tempo difere conforme o género. Estando as tarefas domésti- cas, tomar conta dos filhos ou dos mais idosos, maio- ritariamente, a cargo das mulheres, os tempos em que estas não têm atividades obrigatórias é dedicado a tarefas úteis que se prendem sobretudo com o cuidar. Tal como afirmam Soeiro, Araújo e Figueiredo (2020, p. 82), “a maior parte das vezes atribuir os cuidados à família é atribuí-los às mulheres. A este processo cor- responde, pois, não só uma distribuição da pobreza no feminino, mas também das disposições subjetivas para os cuidados”. A este propósito, também Rothes, Queirós e Mendes (2019) identificam a falta de tempo e/ou energia como uma barreira mais importante para as mulheres. Verificam, também, que uma maior propensão para participar e uma adesão efetiva das mulheres ocorrem quando “as crianças ultrapassam as tenras idades e, sobretudo, quando a sua progres- são educativa começa a tornar mais exigente e difícil o adequado acompanhamento, em casa, da respetiva vida escolar” (Rothes, Queirós & Mendes, 2019, p.100). As atividades do grupo ao terem sido realizadas em ambiente online permitiram, durante o confinamen- to, contornar a dificuldade de conciliação dos traba- lhos de cuidado com a participação no projeto. Foram várias as sessões que contaram com a participação de crianças, constituindo-se, assim, um tempo lúdico de

relação intergeracional entre famílias, promotor de sociabilidade e bem-estar.

O direito à educação pressupõe o acesso a todas as pes- soas, independentemente de qualquer condição – seja de idade, género, escolaridade, socioeconómica, cul- tural ou geográfica – a oportunidades que permitam o seu desenvolvimento pessoal, social, cultural e polí- tico. Os dados disponíveis a nível europeu, incluindo Portugal2, mostram um aumento do número de adul- tos a participar em atividades educativas (entre 2007 e 2016), seja em contextos formais, não-formais ou informais. Contudo, ao analisarem-se as característi- cas sociodemográficas destes aprendentes percebe-se a predominância um perfil:


os adultos aprendentes tendem a ser relativamente jovens, possuem escolaridades iniciais mais longas, assumem preferencialmente trabalhos de «colarinho branco» com rendimentos médios mais elevados. Vivem, pois, tendencialmente, em zonas urbanas, designadamente naquelas que constituem espaços residenciais preferenciais das pessoas de classes mé- dias e altas mais instruídas. O ambiente familiar pesa na sua decisão de participar em ações de educação de adultos. A maioria assume que o faz por razões rela- cionadas com o seu trabalho, ainda que sejam igual- mente referidas razões relacionadas com a vontade de promover as suas interações sociais e com alterações significativas nas suas vidas pessoais (Rothes, Quei- rós & Mendes, 2019, p.90).


Identifica-se, assim, uma continuidade na distribui- ção desigual da participação educativa de adultos em função da idade, escolaridade, profissão, situação económica, local de residência e ambiente familiar (retaguarda familiar e suporte social, habilitação mé- dia do agregado familiar, etc.).

Os estudos sobre a participação em atividades de aprendizagem ao longo da vida vêm demonstrando que esta tende a ser tanto maior quanto mais elevado é o nível de escolaridade (Ávila & Aníbal, 2019). As aná- lises realizadas por Rothes, Queirós e Mendes (2019, p.89) reforçam esta correlação: “estamos perante o re- sultado óbvio do carácter cumulativo da educação, que reforça injustiças educativas e sociais e que se tinham revelado já na educação formal inicial”. De igual for- ma, os autores identificam que as barreiras à parti-


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2 – Os níveis de participação dos adultos nas modalidades de aprendizagem formal, não formal e informal, no contexto dos países europeus, tem vindo a ser analisado através do IEFA - Inquérito à Educação e Formação de Adultos, um instrumento cuja conceção é da responsabilidade da Eurostat e que conta até ao momento com quatro edições (2007, 2011, 2016 e 2022). Em Portugal, o INE (Instituto Nacional de Estatísticas) é a entidade responsável pela adaptação deste inquérito ao contexto português, assim como pelo desenho da amostra e pela recolha de informação, não estando ainda disponíveis os dados relativos à edição de 2022.

cipação educativa de adultos são geralmente mais prováveis de serem superadas “entre adultos com tra- jetórias educativas iniciais menos traumáticas e mais bem-sucedidas, mesmo que igualmente curtas” (Ro- thes, Queirós & Mendes, 2019). Sendo a educação um direito que exige conciliar a possibilidade de exercício com outros direitos civis, é particularmente importan- te criar condições para que as pessoas adultas tenham experiências educativas positivas. O projeto ‘O Poder das Palavras’, ao valorizar a aprendizagem colaborativa em contexto informal, contribuiu para que as partici- pantes pudessem estabelecer outras formas de relação com o saber e o apreender, diferentes de vivências esco- lares ou educativas formais e não formais prévias.

Aliás, a taxa de participação educativa de adultos é mais elevada e tem mantido uma tendência de cres- cimento em modalidades de aprendizagem informal, observando-se que a mesma diminuiu à medida que aumenta o grau de formalização das atividades edu- cativas (Ávila & Aníbal, 2019). São vários os elementos que podem ajudar a interpretar estes dados e um dele é, precisamente, a existência de programas e projetos que têm contribuído para uma mudança de perspetiva sobre os processos de aprendizagem.


As palavras aprender e aprendizagem passaram a fa- zer parte do quotidiano de milhares de adultos que an- teriormente as associavam exclusivamente à escola e à infância e escola. Esses indivíduos, integrados em processos de RVCC ou EFA, tomaram então consciên- cia da diversidade e transversalidade das aprendiza- gens que todos realizamos, em diferentes contextos e em diferentes etapas da vida, o que teve como con- sequência uma maior atenção da sua parte às apren- dizagens que realizavam e que não encaravam como tal, assim como uma maior propensão e vontade de se envolverem em novas aprendizagens (Ávila & Aníbal, 2019, pp.28-29).


As modalidades de educação informal são mais favo- ráveis à continuidade da participação educativa de adultos3. Estas, quando aliadas a uma intervenção co- munitária assente em princípios democráticos e não assistencialistas – como os que caracterizaram este projeto –, criam oportunidades para o desenvolvimen- to de redes de sociabilidade e de participação coletiva na melhoria dos seus contextos de vida.


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Em síntese: avaliação e reflexão final

Este projeto constituiu uma oportunidade de socia- bilidade fundamental em tempos de confinamento, marcada pela entreajuda. Para além da reflexão sobre as atividades realizadas ao longo do projeto4, a avalia- ção das interações e atividades desenvolvidas foi feita através do diálogo potenciado num ‘fórum’ para o efei- to. Como principais conclusões podemos salientar, de forma sucinta, que em geral esta experiência:

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  1. valorizou o diálogo como forma de combate ao isolamento e solidão;

  2. valorizou a ludicidade que o acesso aos equi- pamentos eletrónicos potencia;

  3. possibilitou a criação de redes de suporte e de laços de amizade entre as cuidadoras;

  4. apoiou a integração na comunidade de novos residentes;

  5. permitiu aumentar conhecimentos sobre os recursos sociais e educativos da comunidade;

  6. combateu a infoexclusão, na medida em que potenciou aprendizagens especificas de aces- so a software e ferramentas de colaboração online;

  7. apoiou o processo de formação motivando para a sua continuidade.


Como principais constrangimentos foi mencionado o facto de os participantes terem de partilhar o telefone, computador ou IPad, com outros membros da famí- lia e ainda os tempos e espaços de participação, dado a exiguidade das habitações. Paralelamente, foram percebidos alguns efeitos da participação também nos profissionais da educação, nomeadamente uma abertura para outras formas de estar e de realizar in- tervenção socioeducativa e comunitária com adultos, baseadas na horizontalidade de relações, na decisão participativa, no trabalho colaborativo em contexto informal e lúdico. Identificou-se, de forma especial, o


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3 – Destacamos, a este propósito, a colaboração do grupo no processo de preparação de candidatura de uma das participantes a um concurso de acesso ao ensino superior pelo regime maiores de 23, nomeadamente na elaboração do seu portefólio de aprendizagens.


4 – Esta reflexão foi produzida a partir de notas de observação e das devoluções sobre as atividades do projeto que os participantes foram parti- lhando com o grupo no decurso do mesmo.

reconhecimento do bem-estar como algo basilar à in- tervenção comunitária. Como refere Trevisan (2009) a intervenção comunitária


deverá construir caminhos de inclusão que respeitem, ao mesmo tempo, as suas caraterísticas e especificida- des bem como o alcance de níveis de bem-estar satisfató- rios (…) o bem-estar de pessoas e grupos não se resumirá à sua condição de bem-estar material, mas ao mesmo tempo, à sua identidade enquanto atores, à sua cultura e à reclamação de diferentes espaços de participação e, por isso, de cidadania (Trevisan, 2009, p.1).


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Além das tarefas relacionadas com o cuidar dos fi- lhos e das famílias, juntam-se as tarefas relacionadas com a limpeza, confeção de alimentos. Como dizem Soeiro, Araújo e Figueiredo (2020), estas tarefas de natureza distinta remetem todas para o conjunto de atividades associadas à reprodução social tradicional- mente atribuídas às mulheres na esfera doméstica. O peso destas tarefas foi acentuado na situação pandé- mica, tornaram-se quase a única rotina diária, o que criou alguma exaustão e aguçou a necessidade e a dis- posição para participar nas conversas promovidas no grupo de WhatsApp e nas propostas de atividades que quebrassem os ritmos quotidianos.

Como referem Berger e Mohr (2019), para tentar com- preender a experiência do outro, primeiro é preciso desmontar o mundo tal qual o vemos dependendo da posição em que estamos nele e reconstituí-lo do modo em que é visto a partir da posição dos outros. Ao longo do projeto foi necessário enfrentar os problemas e os constrangimentos que cada uma manifestava e apelar à nossa imaginação e criatividade, ponderando a falta de escolhas com que muitas vezes nos confrontáva- mos e sobreviver nas resoluções que não possuíamos. Um dos grandes desafios da intervenção comunitária é criar uma conscientização coletiva que ajude a fazer escolhas em função dos recursos e das oportunidades que temos. É, contudo, também necessário reinventar e lutar por melhores condições de vida. Não nos ficar- mos somente pelas possibilidades micro-sociais, mas tentarmos alargar a nossa intervenção para os espa- ços meso e macro-sociais. Nestes diálogos para com- preendermos as experiências dos outros foi necessário descentrarmo-nos dos nossos quotidianos e reconsti- tuirmos um mundo que valorizasse a solidariedade, a cumplicidade e a sociabilidade como músculos que se movem pelo poder das palavras.


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Referencias bibliográficas:


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6220202063934p.75-82

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