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CIRCULARIDADES E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA: ABORDAGENS PRÁTICAS PARA O FORTALECIMENTO DE REDES DE CUIDADO DURANTE A PANDEMIA DA
COVID-19
Bruna Tibolla
Universidade de São Paulo (Brasil)
Juliana Pedreschi Rodrigues
1
Universidade de São Paulo (Brasil)
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Este artigo objetiva apresentar a importância das circularidades, processos circulares, para a efetivação de redes de cuidados, tendo como exemplo um território educativo localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo, Brasil. Nos escritos, apresenta-se e discute- se excertos de dados coletados por meio da técnica de grupo focal realizado com dois educadores sociais de espaço não formal de educação, complementado pela narrativa de duas profissionais da educação formal, que tiveram como base práticas mediadas por processos circulares e práticas restaurativas, além de reflexões sobre a importância das redes de cuidado e de acolhimento no contexto da pandemia da Covid-19. Em considerações finais refletiu-se sobre a necessidade do fomento à participação para a efetivação da solidariedade nas comunidades.
Circularidades; Construcionismo Social; Educação so- cial; Práticas Restaurativas; Redes de cuidado.
This article aims to present the importance of circularities, circular processes, for the implementation of care networks, taking as an example an educational territory located in the East Zone of the city of São Paulo, Brazil. In the writings, excerpts of data collected through the focus group technique carried out with two social educators from non-formal education spaces are presented and discussed, complemented by the narrative of two formal education professionals, who were based on practices mediated by circular processes and restorative practices, as well as reflections on the importance of care and reception networks in the context of the Covid-19 pandemic. In final considerations, we reflected on the need to encourage participation to implement collective and supportive care in communities.
2
Circularities; Social Constructionism; Social educa- tion; Restorative Practices; Care networks.
Introducción
A pandemia da COVID-19 impactou a população mundial no início de 2020 - estendendo-se até maio de 2023, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou oficialmente seu fim - exigindo dos governantes ações emergenciais nas mais variadas áreas da sociedade, no intuito de conter a propagação da doença. Tal contexto, não afetou somente a saúde de milhões e milhões de pessoas, mas provocou intensas mudanças e reflexões ambientais, lutas e resistência por políticas públicas e governos mais comprometidos com seus cidadãos. Nesse sentido, exigiu-se dos representantes de governo estratégias para a contenção do crescimento da curva e do contágio, bem como de suporte e apoio às comunidades e populações, considerando as especificidades culturais, as políticas existentes, o contexto socioeconômico para a preservação das vidas (Guimarães & Pinheiros, 2021). Neste contexto as palavras de Silva, Santos e Soares (2020) caracterizaram o momento vivido pela rápida substituição – e sem qualquer processo adaptativo
- de relações presenciais, por afetos em telas de computadores ou janelas. Em aquele período, foi preciso reinventar, adaptar hábitos e preencher o tempo com uma outra vida. Dessa forma, o momento de isolamento e agravamento das crises ignoradas pelo Estado dificultou ainda mais a desigualdade e violências dos países mais vulneráveis e, nessa perspectiva, as chamadas medidas de distanciamento social sugeridas pela OMS – Organização Mundial da Saúde - ressoaram na forma de funcionamento das escolas, sendo necessário, em brevíssimo tempo, a criação de um novo modelo educacional, sustentado pelas tecnologias digitais e pautado nas metodologias da educação online (Vieira & Seco, 2020).
Com isso, fez-se necessário no ensino, a redefinição dos objetivos curriculares, definindo-se o que seria realmente importante aprender/ensinar num período indeterminado de distanciamento social, assim como compreender o novo papel do professor/educador – que se estendeu para além processo de ensino-aprendizagem, ou seja, reafirmando a importância do cuidado para “a garantia do suporte e apoio necessários aos estudantes e famílias mais vulneráveis e a relevância de se implementar um sistema de comunicação eficiente” (Vieira & Seco, 2020, p. 1014).
Por outro lado, e apesar de todos os percalços enfrentados nesse novo caminho de sofrimento e muitas mortes, a pandemia também fez despertar
a solidariedade e o senso de cooperação em várias comunidades, reforçando a imprescindibilidade da empatia, valorizando a educação social, as construções comunitárias coletivas para a escuta, acolhimento e apoio, bem como as novas abordagens práticas de intervenção comunitária objetivando a criação das novas e necessárias redes de cuidado.
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E, dentre as tantas possibilidades, experiências e práticas vivenciadas durante o longo período pandêmico estão os processos circulares. Assim a metodologia do sentar-se em formato de círculo para dialogar, mediar conflitos, confraternizar - que possui aplicação essencialmente presencial – precisou ser remodelada durante a pandemia, tendo em vista o contexto de relações virtuais resultante do distanciamento social. Portanto, o presente artigo objetiva compilar algumas das principais estratégias, advindas da metodologia dos processos circulares utilizadas por educadores sociais e profissionais da educação formal que atuaram na Zona Leste da cidade de São Paulo para a consolidação de suas redes de cuidado como de espaços de fala e de escuta atenta durante o longo período de pandemia (Tibolla, 2023).
Sobre os processos circulares
O formato da geometria circular simboliza que ali, naquele espaço presente, a liderança deve ser partilhada de forma igualitária, conexa e inclusiva. Sendo assim, a responsabilidade pelo andamento do processo grupal é codividida entre todos os participantes. Com isso, o poder que o círculo e os processos circulares emanam, reside na maneira como cada história é contada. Cada uma é singular e oferece sempre uma lição. Em geral, as histórias aproximam, conectam e possibilitam partilhas significativas e potentes nos espaços dialógicos em que a escuta com o coração é possibilitada (Pranis, 2010).
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Os círculos - metodologia consolidada a partir de experiências dos povos originários da Primeira Nação Carcross/Tagish localizada no território de Yukon, Canadá - possuem uma essencialidade prática que se concentra em criar espaços de liberdade para que cada participante possa expressar suas crenças, reconhecer erros e se conectar com a sua verdade sem qualquer defesa. Pranis, Stuart e Wedge (2003) destacam a potência do compartilhamento que os círculos apresentam e nos afirmam que:
(...) os círculos nos reúnem para compartilhar quem somos além de nossas aparências. São lugares de escuta de como é ser outra pessoa. Eles também são lugares para ser ouvido - para expressar o que está em nossas mentes e corações e fazer com que os outros o recebam profundamente. Contar nossas histórias no espaço seguro dos Círculos abre janelas para a vida uns dos outros, dando-nos momentos em que podemos conhecer o caminho que outro percorreu, bem como sentir que os outros apreciam o nosso próprio caminho. As histórias de vida compartilhadas são naturalmente transformadoras. Oradores e ouvintes são tocados e mudados; assim são seus relacionamentos. Os círculos não “fazem” isso acontecer; em vez disso, eles fornecem um fórum imbuído de uma filosofia e formato que reflete isso, onde mudanças profundas são altamente prováveis de acontecer (p. 15).
Nesse sentido, unindo a sabedoria comunitária com os valores da sociedade contemporânea que implicam na necessidade de respeito, de valorização da diversidade
e de apoio coletivo, algumas características são fundamentais para serem destacadas nos processos circulares, conforme nos explica Pranis (2010, p. 19): “respeito a presença e dignidade de cada participantes; a valorização das contribuições de todos os participantes; salientar a conexão entre todas as coisas; oferecer apoio para a expressão emocional e espiritual; Dar voz igual para todos”.
Desta forma, para que o processo circular se consolide alguns elementos estruturais intencionais são necessários, sendo eles: cerimônia (cerimonies), bastão de fala (talking piece), facilitador ou coordenador do grupo (keepers), orientações (guidelines) e processo decisório consensual (consensus decision-making), (Pranis, Stuart & Wedge, 2003; Pranis, 2010).
Por sua vez, no que se refere aos objetivos dos processos circulares, a partir da aplicação dos círculos, diversas situações e terminologia foram surgindo, cumprindo objetivos e funções específicas. Porém, cumpre ressaltar que, tais nomenclaturas não são universais, mas possibilitam a percepção do grande potencial dos processos circulares. Neste processo entende-se que a diversidade dos círculos se concentra em atender diferentes intencionalidades, tais como, “Círculos de Diálogo, de Compreensão, de Restabelecimento, Sentenciamento, Apoio, Construção do Senso Comunitário, Resolução de Conflitos, Reintegração, Celebração.” (Pranis, 2010, p. 28).
Percebe-se também que a abordagem dos processos circulares, em muito se assemelha com os Círculos de Cultura propostos pelo método Paulo Freire (1967) em que todos os participantes, em círculo e, a partir da colaboração, reelaboram, reconstroem percepções em um mesmo mundo comum, a partir das trocas recíprocas, afetivas e conscientes de si e do outro. E sabe-se que para a sua concretização, em geral, os círculos apresentam condução simples, mas que possibilita intensidade e profundidade quando o objetivo é pensar estratégias de criação e ou o fortalecimento de relacionamentos significativos e mais saudáveis. Para isso, é fundamental que exista interconectividade, apoio, reconhecimento e unicidade. Por isso a geometria circular se faz imprescindível para que todos se comprometam uns com os outros sem criar sensação de haver “lados”. (Boyes-Watson & Pranis, 2011).
Por sua vez, em espaços virtuais, o objetivo dos processos circulares deve ser aproximar-se da realização de aqueles realizados em ambientes presenciais, ou seja, permitir o diálogo, expressão dos sentimentos e dos pensamentos de todos os participantes, em
um contexto que permita a construção coletiva, considerando a fragilidade do momento vivenciado, a consolidação do espaço virtual como sendo cuidador, solidário e preventivo acabou por se fortalecer.
Educação, circularidades, práticas restaurativas, redes de cuidado e acolhimento em tempos pandêmicos
Sabe-se que durante a pandemia, diversas situações dolorosas, paradoxalmente, promoveram relações de solidariedade que possibilitaram um respiro importante na construção política da resistência1 e afirmação da vida nos revelando que o acolhimento nesses tempos não teve a ver com práticas clínicas extensas e pautadas em diagnósticos, mas sim no agir coletivamente buscando estratégias que considerassem as singularidades dos distintos públicos atendidos (Quadros, Cunha & Uziel, 2020).
Em construção cumulada à temática, a importância das propositivas relacionais ganha destaque também nos escritos de Ayres (2004) sobre a questão do cuidado associada aos “coletivos humanos” (p. 26), uma vez que, torna-se imprescindível pensar as dimensões sociais dos processos de adoecimento, bem como das respostas a estes. Nesse sentido, quando se pensava nas possibilidades de promoção de saúde e de redes na pandemia, pautado na humanização, “fica evidente a inseparabilidade deste plano individual do plano social e coletivo.” (p. 27).
O autor ressalta ainda (2004, p. 27) a importância da construção de respostas coletivas ao sofrimento como estratégia de promoção de saúde considerando-as em primeiro lugar:
(...) porque a ideia mesma de valor só se concebe na perspectiva de um horizonte ético, que só faz sentido no convívio com outro, no interesse em compatibilizar finalidades e meios de uma vida que só se pode viver em comum. E, em segundo lugar, porque a própria construção das identidades individuais, as quais plasmam os projetos de felicidade em cujas singularidades se deve transitar na perspectiva do Cuidar, se faz, como já apontado acima, na interação com o outro, nas inúmeras relações nas quais qualquer indivíduo está imerso, já antes mesmo de nascer (...).
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Estes conceitos, se cruzam e destacam as trocas produzidas em espaços coletivos e colaborativos, cujo objetivo seja a promoção de conhecimento sobre as necessidades de si e dos outros, de modo a se caracterizarem como dispositivo educativo, uma vez que, as trocas e compreensões de si e do outros, permitem profícua possibilidade de construção e reconstrução de humanidade. (Teixeira, 2005).
Sobre isto Quadros, Cunha & Uziel (2020) reforçam que dispositivos e propositivos de acolhimento, em tempos que a aproximação está mediada por aparelhos eletrônicos, necessitam de um olhar para os afetos e suas respectivas afetações a partir das singularidades do contexto, permitindo que a construção de espaços colaborativos que se tornem também interventivos no que concerne à promoção de redes de cuidado.
E, em se tratando de redes de cuidado, sabe-se que a educação é tida como um vetor de proteção para a saúde mental, bem como ser um espaço de fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos Humanos. É na escola que é percebida a violência que os jovens sofrem nos ambientes familiares e comunitários, e é em esse ambiente que falam pela primeira vez sobre experiências de sofrimento (Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância - Unicef).
Mas, vale ressaltar, que a escola também é um espaço de fortalecimento de meninas e meninos em fatores que são decisivos para prevenir e romper com a violência: a autoproteção, a autoestima e a autoconfiança; a construção de relações afetivas protetivas; e o engajamento em um projeto de vida.
– Entende-se por resistência o ato de se opor ao status vigente, independente de quem esteja no poder for da direita ou da esquerda.
(Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância - Unicef).
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No contexto deste acolhimento, Belinda Hopkins (2021), idealizadora de proposta metodológica cuja aplicação acontece a partir das práticas restaurativas, entre estes a hora do círculo - compartilhou as experiências e trocas entre seus colaboradores que criaram, em formato de acróstico, e utilizando a palavra ‘restore’ – em tradução livre restaurar - alguns sentidos e reflexões indispensáveis para a aplicação das práticas restaurativas como ferramenta relacional educativa em tempos de pandemia. Os grifos de destaque se concentram nas palavras componentes do acróstico, bem como sob seu sentido. O primeiro passo mencionado por Hopkins, se concentra no (R)econhecimento do que aconteceu e de como estas experiências foram vividas singularmente por cada um, ou seja, as práticas restaurativas se concentram em possibilitar a todos que contem suas experiências e histórias em esse momento. Além disso, pensar as práticas restaurativas em um mundo em pandemia implica olhar para a necessidade de “como responder com (E)mpatia, compaixão e autocuidado” a diversidade e emoções. No mesmo sentido, também caminha o restabelecimento da sensação de (S)egurança para que se possa seguir adiante, bem como, o vislumbre dos auxílios necessários àqueles que se sentem inseguros frente às retomadas necessárias (Justiça em Círculo, 2021). Por exemplo, a autora propõe que espaços e comunidades olhem para os (T)raumas e reflitam sobre “como apoiamos pessoas que vivenciaram traumas durante o isolamento ou que estão enfrentando um futuro ainda mais incerto” (...). No mesmo plano, caminham as práticas restaurativas como (O)portunidade de mudar o que precisa ser mudado, visto que, com a pandemia, foi possível questionar até aspectos invariáveis do mundo (Justiça em Círculo, 2021).
Além disso, Hopkins salienta que os (R)elacionamentos foram e são imprescindíveis para a construção de espaços relacionais responsivos e inclusivos, a fim de reconectar e construir as relações. Ademais, os encontros virtuais e presenciais em tempos de pandemia necessitaram de (E)ngajamento pela saúde, bem-estar possibilitando às comunidades o exercício de corresponsabilidade frente a esses temas. (Justiça em Círculo, 2021).
Neste sentido pode-se perceber que as Circularidades aliadas as Práticas restaurativas, no contexto da pandemia e do longo período de isolamento social,
se revelaram como possíveis estratégias para a intervenção comunitária, facilitando a participação da comunidade por meio do acolhimento para a escuta, para o compartilhar das dificuldades, das dores e mesmo das pequenas alegrias e esperanças de vencer os desafios locais impostos naquele momento.
Percursos metodológicos: grupo focal à luz do construcio- nismo social, resultados e discussões2
Baseando-se na abordagem qualitativa, a metodologia escolhida foi o uso da circularidade para a realização de um grupo focal com o total de 7 profissionais, educadoras e educadores sociais, que trabalharam com processos circulares e práticas restaurativas em espaços educativos localizados na Zona Leste da cidade de São Paulo. A confecção do roteiro de entrevista versou sobre o interesse da investigação apreciativa inspirada de Vidotto (2018), Ferraz et al. (2019), Rodrigues et al. (2019), voltada aos objetivos do estudo que buscou compreender como aconteceu o processo da aplicação e adaptação das metodologias dos processos circulares e/ou práticas restaurativas no ambiente virtual ao longo do período de pandemia. Além disso, buscou-se apresentar as (im)potencialidades destas aplicabilidades, objetivando a disseminação destas práticas para outros contextos e territórios, como veremos na descrição dos percursos metodológicos relacionados à análise dos dados.
Ressalta-se que os resultados aqui apresentados versam apenas sobre o recorte de algumas das principais respostas dadas para uma das perguntas propostas no grupo focal e que, também, foi tema de conversas informais coletadas entre profissionais
- Este artigo alicerçado em um recorte da pesquisa de mestrado da autora principal, aprofunda um dos resultados pouco discutidos em dis- sertação defendida em dezembro de 2022, na EACH/USP.
da educação formal que atuaram com os processos circulares durante a pandemia na mesma região.
A pergunta feita: “Vocês acreditam ou presenciaram em sua atuação com as práticas restaurativas e com os processos circulares, que redes de cuidado ou de apoio foram criadas ou fortalecidas?”, apresentou diversas possibilidades e entrelaçamentos, dos quais apresenta-se a seguir.
Pode-se notar, de maneira geral, que as respostas apresentaram uma vasta gama de possibilidades como podemos ver em alguns dos excertos das narrativas selecionadas:
Participante 1 - Coordenador Pedagógico em uma Escola Social - Fundamental II e Ensino Médio: “(...) a gente fez intervenção de tentativa de suicídio, coisas que apareceram nos círculos virtuais e que nos possibilitaram fazer intervenções. Aí precisou ser presencial quando precisou acionar conselho, fazer visita, mas é possível sim pessoas fazerem conexões genuínas virtualmente”.
Participante 4 - Educador Social em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos: “(...) então a gente conseguiu assim dentro de um círculo trazer essa questão da violência sexual sem ser tão exposta, de uma maneira de os educandos falaram ali com tranquilidade e confiaram no grupo, confiaram em nós enquanto educadores que estavam, eu e o Gabriel, o que foi positivo assim foi possível perceber que teve um encaminhamento sabe, pois ter a psicóloga, a assistente social, até a coordenação junto fez a gente conseguir orientar tudo melhor”. “(...) acredito que quando estávamos de forma online, conforme as coisas foram acontecendo e a gente veio para modalidade presencial, a gente começou a perceber mais claramente a avalanche de conflitos que as crianças estavam trazendo de casa, desde uma violência doméstica, até mesmo casos de violência sexual”.
Outra intencionalidade de investigação desta pesquisa vincula-se à compreensão de como e se estes espaços podem fortalecer redes de apoio e diálogos acerca da prevenção em saúde mental. Nos últimos anos, sabe- se que as práticas restaurativas e processos circulares, utilizados para o manejo de conflitos de forma não violenta revelaram ser estratégia de intervenção eficiente por propor ferramentas conversacionais para mediar situações de autolesão, suicídio e organizar redes de apoio para situações de violência doméstica e estrutural.
Faz-se outro destaque para os espaços circulares em que família e escola conseguem construir juntos um caminho de possibilidades e significações, por exemplo, como no relato de um dos participantes da pesquisa sobre os círculos de diálogo e mediação de conflitos:
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Participante 1 - Coordenador Pedagógico em uma Escola Social - Fundamental II e Ensino Médio: “(...) eu acho que foi possível sim verificar isso (as redes de cuidado), aí eu queria trazer uma cena de uma família composta por 4 ou 5 integrantes que a gente acabou atendendo virtualmente e com telefonemas, e depois acabamos fazendo um círculo presencial, família separada né, e a gente fez com os filhos e com as filhas desse casal. E aí as crianças não se colocavam e elas conseguiram se colocar no círculo e dizer o quanto havia uma relação tóxica, o quanto que o pai oprimia em alguns momentos e elas se colocaram, dizendo “a gente está assumindo a casa, eu tô assumindo um papel que é deles [sic]”, elas conseguiram se colocar e expressar sentimentos e desejos do que eles queriam, que se reorganizasse a família deles. E depois a gente caminhou, depois fez um outro círculo para ver como as coisas estavam né? Nem sempre acabou com final feliz, mas acho que atendeu as necessidades das famílias e dos estudantes. Foi muito marcante o quanto que foi possível organizar um círculo de diálogo e depois fazer a mediação e ver os resultados”.
Além dos dados obtidos por meio da realização do grupo focal, destaca-se duas conversas informais que ocorreram durante o período de pandemia com outras educadoras atuantes da mesma região da Zona Leste. A primeira delas, aconteceu com uma educadora do ensino fundamental dos anos iniciais. Durante o diálogo, a educadora contou sobre como os círculos contribuíram para a criação de uma rede de cuidado para estudantes que perderam familiares para a Covid-19. Na escola, durante o processo de retorno de um colega que perdeu a mãe para a doença, a turma se organizou em círculo para um momento de acolhimento dos sentimentos do rapaz, bem como para a expressão de disponibilidade para serem rede de cuidado e suporte.
Em outra conversa informal com outra coordenadora pedagógica no mesmo bairro, ela relatou que durante a pandemia propôs à equipe de educadores círculos de autocuidado para expressão de sentimentos e necessidades. Em um destes momentos, uma educadora solicitou ajuda, pois estava sendo vítima
de violência doméstica em um processo doloroso de separação.
Desta forma, a equipe toda se organizou como rede de apoio e puderam auxiliar no aluguel de uma casa, na reconstrução de um lar para a colega e no processo de acompanhamento de outras medidas cabíveis.
Com isso, retoma-se nesta discussão, a proposição do acróstico RESTORE já anteriormente mencionado, que se faz necessário para olharmos tanto para as práticas restaurativas, quanto para processos circulares como (O)portunidade de mudar o que precisa ser mudado enfatizando os (R)elacionamentos e suas contribuições para a construção de espaços relacionais responsivos e inclusivos, a fim de reconectar e construir as relações (Justiça em Círculo, 2021).
Destaca-se também as contribuições de Ayres (2004) e Teixeira (2005) sobre a potências dos coletivos humanos para a consolidação de redes de cuidado e exercício da autonomia, sendo a vivência coletiva um processo edu- cativo que produz, para além de espaço de fala garanti- do, o comprometimento com a mudança social, corro- borando com Pranis (2010) ao afirmar que não é possí- vel participar de um círculo e sair dele sem uma lição, uma reflexão ou impacto causado pelas narrativas e histórias das outras pessoas que participam do mesmo.
Considerações finais
Durante a realização dos círculos, foi possível notar em conversas informais, a profundidade da participa- ção e do impacto das histórias, resultando no forta- lecimento das redes para além do apoio, mas para a garantia de direitos.
Reitera-se aqui a compreensão da educação não so- mente como fator de mudança, mas, também, como possibilidade para o exercício de empoderamento e desenvolvimento de autonomia dos sujeitos, assim como, de valores imprescindíveis para o viver em so- ciedade, a partir da égide da ética e da cooperação que pode e deve transcender a escuta para construir rela- ções baseadas no respeito e no compromisso com a transformação social (Freire, 1979).
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Sabe-se que o contexto da pandemia afetou significati- vamente a vida de todas as pessoas no mundo inteiro. Com a educação social não foi diferente. No entanto, confirmando novamente a importância dos espaços educativos para o desenvolvimento de relações afeti- vas e de solidariedade, seja qual for a necessidade em pauta, as redes de cuidado se consolidaram como uma forma de exercício da autonomia e do pertencimento. Por fim, tais caminhos reforçaram a importância da educação social como ferramenta de transformação do cotidiano. A garantia de espaços democráticos e participativos convida à discussão de qual educação queremos e quais mudanças desejamos, como nos lembra Paulo Freire (1992, p.111), a esperança aliada à ação crítica e construtora de pontes, é necessária atualmente. Por isso, há que se ter esperança do ver- bo esperançar, que se levanta, que não desiste e que permite “juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
E, neste sentido ressaltamos que os círculos, sejam eles de cultura, de processos circulares, de roda de conversa, da pedagogia da Roda, de dança circular e de tantas outras circularidades, podem contribuir sobremaneira para a integração, facilitação de diálo- go, de troca e construção de conhecimentos, nos re- velando a sua importância no processo do fazer e do ser coletivo, pois não há mudança social sem que haja participação.
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