EXPERIÊNCIA E INFÂNCIA1

Paula Cristina Pereira2

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Universidade do Porto


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Resumo:

Procura-se, neste texto, articular duas especificidades filosóficas da educação: experiência e infância; num registo de racionalidade que pode ser designado como regime de possíveis e de errância. Isto é, configurar a educação num regime sempre aberto a novas formas de pensar e à plasticidade de competências de sentir, pensar, imaginar, fazer e comunicar, com vista à construção de processos de emancipação face a uma herança da lógica bivalente que estabeleceu formas privilegiadas de pensar, exponenciadas na razão instrumental da gestão tecnológico-política do modelo capitalista e no repúdio ou ausência da experiência das sociedades contemporâneas.


Palavras-chave:

Experiência; Infância; Filosofia; Educação.

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Abstract:


The aim of this text is to articulate two philosophical specificities of education: experience and childhood; in a register of rationality that can be called a regime of possibilities and wandering. In other words, to configure education in a regime that is always open to new ways of thinking and to the plasticity of skills of feeling, thinking, imagining, doing, and communicating. To build processes of emancipation, despite a legacy of bivalent logic that has established privileged ways of thinking, exponentiated in the instrumental reason of the technological-political management of the capitalist model and in the rejection or absence of experience in contemporary societies.


Keywords:

Experience; Childhood; Philosophy; Education.


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  1. – O presente texto resulta da (re)leitura e articulação dos seguintes textos seguintes: – “A Filosofia e a maturidade dos estados nascentes” / “Philosophy and the maturity of nascent states “, in Ágora, Papeles de Filosofía, Universidad de Santiago de Compostela, vol.31, num. 1, 2012,

    pp. 153-162; “De la spécificité philosophique de l’éducation”, Penser l’éducation, Revue International, Université de Rouen, n°23, Avril 2008,

    pp. 77-87.

    Nesta reedição, reúnem-se e relacionam-se temas, conceitos e noções, que julgo pertinentes na formação de professores em Filosofia, mas que comportam também toda a relevância na formação de professores, no âmbito das Humanidades.


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  2. – Paula Cristina Pereira é Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Investigadora Principal do Grupo de Investigação Philosophy and Public Space do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto – FIL/0050.


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    Para começar

    A história ocidental da Educação está ainda, em boa parte, marcada pelo pensamento da modernidade, firmando na lógica bivalente a separação entre o saber e o não saber e formas privilegiadas para compreender o mundo e construir a realidade. Os processos de construção de subjetividades têm sido formatados por dispositivos ideológicos, sociais, económicos e científicos, que se dizem também como modos de poder e como imperativas transcendências. É o caso da articulação entre ciência, conhecimento e processos produtivos, que, no quadro da gestão tecnológico- política da vida, própria do modelo capitalista, tem naturalizado e legitimado a ciência e a educação como veículos do poder económico, submetidas, portanto, a uma lógica utilitarista, diminuindo os seus essenciais papéis na formação e na emancipação humanas, no que respeita, nomeadamente, à construção da crítica sobre os processos sociais e políticos. Também a revolução tecnológica, já em curso, de ordem eletrónica e/ou virtual pode, como facilmente se compreende, ser utilizada como instrumento de subordinação e alienação. A possibilidade da fusão do digital com a genética rompe com a vida como a conhecemos, obrigando-nos a exigentes reflexões éticas, mas também a pensar, certamente, novos limites e limiares para a formação e educação. Os desafios são muitos – outros se podiam acrescentar – mas o objetivo, aqui, é apenas apontar contextos da experiência humana contemporânea que requerem da filosofia e da educação uma articulação entre o saber, o fazer e o criar. E superar, em cada momento e em cada gesto, a barbárie da não experiência, anunciada por Benjamim. Pois, o repúdio da experiência pode dizer de uma incapacidade para traduzirmos o que acontece como aquilo que nos acontece.


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    Do repúdio da experiência ao ex-perienciar

    O repúdio da experiência articula-se, hoje, frequente- mente, no que à educação e à formação respeita, com a proliferação dos discursos em torno da produtivida- de e da eficiência, alimentando uma pós-cultura que adultera a experiência do pensar, ao reduzir o homem a um perfil profissional – ou mesmo “técnico” – dese- nhado por metáforas oriundas de engenharias empre- sariais, como “flexibilidade”, “competência” e “quali- ficação”. A aprendizagem ao limitar-se ao “domínio” de técnicas e ferramentas, necessárias, sobretudo, à manutenção do círculo produtivo, nas suas mais di- versas expressões, diminui a experiência como aprendiza- gem significativa.

    Por outro lado, todos sabemos como a experiência tec- nológica transforma os desejos, as paixões e o corpo em objetos fundamentais do de uma cultura imago- cêntrica. A experiência encontra-se absorvida pela ex- perimentação da interatividade e da conectividade; emergindo novos mundos e novas realidades alter- nativas que podem, ilusoriamente, ajudar-nos a evi- tar as indesejadas qualidades do mundo real3. Mas manter o mundo à distância articula-se também com a nossa incapacidade para tolerarmos o sofrimento e para persistirmos em consciência de tragicidade, o que pode significar perdermo-nos em sensibilidade e não sermos capazes de pensar. A experiência técnica – como repúdio da experiência – oblitera, pois, que se- jamos provocados a pensar.

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    O que está em causa é a possibilidade da construção do sentido, já que a nossa capacidade de sentir e a nossa capacidade de pensar, de sermos afetados e toca- dos, encontram no que está aí, no que se vê, no que é, no já pensado, no já sentido e no já acontecido, próprios do “peso da atualidade”, uma imersão sensorial que dificulta a nossa ligação ao mundo, desembocando num sentir de alheamento que se tem manifestado na desrespon- sabilização do pensar e do agir, configurando uma sen- sologia como socialização dos sentidos4 .


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  3. – Testemunhamos já a extensão do projeto racionalista e iluminista, que se dirige, agora à transformação do mundo em dados binários, com presença na própria manipulação humana (genoma humano, etc.). Contudo, os riscos e as ambiguidades do desenvolvimento tecnológico

    – vivido quase sempre como ameaçador - não nos pode fazer esquecer outras formas de construir conhecimento e ciências, pois comportam, também, inovadoras soluções para problemas sociais, ou na área da saúde, assim contributos para a educação.


  4. – “Se a ideologia era acompanhada por uma falsa consciência, entendida como uma cegueira ainda não teoricamente cristalizada que impede a cada um a possibilidade de se tornar consciente da sua situação real, a sensologia tende a identificar-se com o falso sentir, porque passa sem

    É o próprio conceito de experimentação que se encontra alterado. A experimentação deslocou-se para a experiência, modificando a nossa relação com o mundo. A própria estética deslocou-se, pela experimentação, para o plano da técnica, fazendo desta uma mais-valia cultural que reside, essencialmente, na fabricação técnica e desrealiza a nossa experiência de mundo.5 Também os acontecimentos fabricados e produzidos, em imagens, pelos experimentos técni- cos, apenas requerem a nossa observação ou, quando muito, a nossa colaboração interativa que não se pode confundir com a intensidade da participação.6

    Mas experiência deve distinguir-se de experimenta- ção e, mais radicalmente, de experimento. Na etimo- logia de experiência temos o prefixo ex e o radical per. O verbo grego perao significa atravessar, passar através e o substantivo peras limite. E o prefixo ex significa para fora. No latim experiri significa experimentar; uma relação com algo que se experimenta ou que se prova; mas o radical é periri que podemos encontrar em periculum, perigo.

    Temos assim na ex-periência a indicação de um para fora do caminho (já que a travessia se configura como caminho) e do limite. O ex da experiência, porque o mesmo de existência, coloca a experiência e a existên- cia no sentido do que vai e é a par, pois a experiência é passagem da existência. A experiênciasurge como fun- damental para a reflexão, já que aquele que experien- cia expõe-se perigosamente a uma travessia, a uma prova. Trata-se, pois, de experienciar a existência no seu limite e perigo, numa radical abertura ao mun- do, procurando assegurar a condição antropológica na amplitude do que é pensar: fazer mundo em mim.

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    Jorge Larrosa Bondía, em Notas sobre a experiência e o sa- ber da experiência, escreve: “O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste pa- rágrafo, é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que al- cança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo

    que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz expe- riência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, pade- cente, recetivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, ergui- do, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade” (p.25). Bondía caracteriza, pois, a experiência como aquilo que nos acontece, que nos toca e nos transforma opondo-se a experimento e a uma acumulação progressiva de ver- dades objetivas.

    A experiência não pode confundir-se com informação, com conhecimentos ou com saber coisas; a experiência supõe movimento entre as coisas, as ideias, o homem e o mundo, alargando as nossas perspetivas racionais, como exercício que nos leva do conhecer para o conhe- cer-se e, sobretudo, do pensar para o pensar-se e do sen- tir para o sentir-se, para que o acontecido tenha um lu- gar para ser sentido: porque a construção de sentido só é possível a partir do acontecido, do sentido em mim.

    Deste modo, a reflexividade deve despontar do imperati- vo de procurar sentido a partir do que não conheço, mas que se constitui como problema na medida em que me toca e me afeta. Experienciar supõe, pois, um envolvimento e uma afinidade que se articula com a capacidade para suportar (sufferere) o que permanece desconhecido, o que chega e o que vem, para que se possa superar a ausência da expe- riência, exponenciada pelas novas tecnologias da ima- gem em afastamento, dissociação e alheamento.

    Confrontarmo-nos com o repúdio da experiência é co- locarmos a possibilidade de equacionar, no sentido de recuperar, os sentidos de enraizamento e de excedên- cia como capacidades de inquietação e mobilidade.

    O grego admitia a origem caótica da sua existência, mas os sentimentos aterradores não só o atormen- tavam como retirava desse sentir a força para criar e transformar. O grego era, de facto, capaz de suportar a


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    qualquer cobertura teórica. (...) Na passagem da falsa consciência para o falso sentir todos se tornam inocentes e é-lhes também retirada a culpa da indiferença: na verdade, agora existe sempre um olho pronto a ver, um ouvido pronto a ouvir, um palato pronto a saborear, mas estes sentidos são anónimos, impessoais» (Perniola, 1993, pp. 14-15).


  5. – A experimentação técnica desenha uma nova categoria de potencialidade que a coloca próxima da arte. A própria arte adquiriu, mesmo, novas configurações, das quais são exemplo as “artes tecnológicas”, que designa «uma arte que incorpora novos meios, ou, na sua acepção mais forte (...), uma arte essencialmente centrada nos meios» (Cruz, 1998, p.429).


  6. – «Nas novas práticas de sociabilidade, a participação é substituída pela colaboração. E se participar implica o des-envolvimento, colaborar assegu- ra a manutenção do sistema em rede. A colaboração traz consigo a eliminação da resistência e do conflito, próprios da participação, adequando-se às relações de poder e de domínio e, portanto, propiciadora da homogeneização em três níveis: a) do indivíduo, socializado na interactividade; b) da produção centrada nos meios e suportes técnicos; c) do sentido, agora submergido na informação e na sua produção» (Pereira, 2006, p.154).

    fragmentação e o impacto da realidade conhecida e da realidade desconhecida e assim experienciava (vivia) a sua inquietação face à existência e a partir dela criava. Face à vida imprevisível e incerta, os gregos ofereceram a sua sensibilidade poética que lhes permitiu criar a tra- gédia e sobreviver criando e recriando sentidos outros. A recuperação da experiência implica o desenvolvimento da capacidade de admitirmos a nossa existência mesmo cindida (ferida), pois «aprender a partir da experiência implica a capacidade de conter e modificar» as «doloro- sas e assustadoras emoções ocasionadas pelo encontro com o desconhecido» (Robins,2003, p.44), colocando em causa o estabelecido e as verdades claras e distintas, no sentido de recordarmos que vivemos sempre à bei- ra do abismo, para que o nosso sentido da ordem e da estabilidade possa ser constantemente desafiado, com a consideração do estranho, com a vulnerabilidade; a possibilidade de sermos tocados pelo desconhecido.

    Na experiência do pensar não é o rendimento cognitivo que primeiro está em causa, mas a construção do conhecimento pelo enriquecimento da nossa experiência de mundo, pelo interesse e provocação que ele nos suscita; uma ação claramente transpositiva que implica o cultivo da recetividade – aos outros e ao mundo – e o cultivo da ação para transformar o sujeito centrado em si num sujeito-parte de uma comunidade/projeto de sentido para dar sentido ao que chega, ao que vem, a um regime sempre aberto a novas formas de pensar, em que o conhecer possa ser conhecer-se e fazer-se sentir. A especificidade filosófica da educação, ao exponen- ciar as virtualidades estético-ontológicas da sensibili- dade, pode revelar-se, afinal, num projeto de sentido com-sentidos, sublinhando a aprendizagem como (re) construção significativa dos saberes: aprender a pen- sar a partir do que me toca e do que me afeta, para que educar seja correlativa da ex-periência de pensar.

    Mas permanecer em experiência exige resistir à apro- priação, à classificação, à captação ou à exclusão, signi- fica restaurar a capacidade de nos confrontarmos com incerteza e com a ambiguidade, a capacidade de sempre renascermos com o indizível, superando toda a posses- são intelectual pela tarefa infinita da filosofia fazer mi- tos – não o relato mítico, mas o impulso para criar mi- tos –, tarefa sempre renovada de sempre voltar a pensar, que rompe (ou enriquece) a ordem da discursividade. A maturidade da filosofia não pode, pois, traduzir-se num qualquer logos claro e distinto frente à indeterminação e à obscuridade da verdade nua, mas ela diz respeito à ampliação do já pensado, arriscando o desamparo (Hei- degger, 2002), arriscando reentrar na infância.


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    Infância

    «Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a expe- riência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”» (Bondía, 2002, p. 28).

    A infância – sendo um período da vida humana que compreende o tempo que decorre entre o nascimento e a adolescência – respeita sempre a um começo, início, princípio, ao nascimento de algo; a uma descontinuidade e experiência de transformação que expressam a pró- pria irredutibilidade do humano; o homem é um ser biologicamente carente, incompleto, mas o seu ina- cabamento inscreve-o no mundo como ser de projeto. A proximidade entre a experiência radical do pensar, o sujeito in-fans e o pensar poético expressam um trans-

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    -historicidade que não distingue o conhecimento das coisas do que se sente por eles. A flor nunca é um con- ceito, ou uma forma, mas ela é com a forma, o seu perfume e a sua cor. “No texto “Para quê poetas?de Caminhos da Floresta, Heidegger formula a questão como possibilidade de «viragem para este tempo indigente, viragem a partir do abismo. Na era da noite do mun- do» (p. 310). Não pensar (poeticamente) é a incapaci- dade de «suportar o abismo do mundo». (ibidem) “Sus- tentado” na poesia de Hölderlin, Heidegger reenvia o pensamento para o que está escondido e velado na “filosofia mal pensada”, que esconde, avançando so- bre a noite do mundo, o abismo que é, afinal, a “noite divina” (ibidem). A noite “provocadora” do pensar. Ex- perienciar (pensar) o ser é arriscar, no rasto do sagra- do, o desamparo. (Pereira, 2006).

    Lembrando a experiência da fantasia (Giorgio Agam- ben em Infância e História), ou da poesia, do rito, do mito e da dança, pode-se afirmar que não são experiências com resultados conceptuais, mas permitem, contudo,

    compreender conceções de mundo que rasgam os li- mites do inacabamento humano, o que pressupõe um nível de reflexividade tangencial ao desconhecido, ao não-evidenciado, ao não-saber, superando no mesmo gesto o já-evidenciado. O que remete o pensamento para uma atividade lúdica, própria do jogo, a reflexão como atitude verdadeiramente livre e criadora.

    Se a infância é o estado de descoberta em que não se fala tudo, nem se sabe tudo, o jogo é a sua regra máxi- ma de problematização. A regra que permite começar de novo, recomeçar a jogar, arriscar no impensável. A articulação entre poesia, infância e jogo diz-nos da condição da experiência de pensar o impensável, le- vando-nos o jogo a arriscar no desconhecido, no não conhecido, a arriscar esta travessia que é pensar.

    Um jogo cénico próprio da dramaticidade da experiên- cia teatral que tem, neste sentido, um alcance teórico a assinalar: um espaço de tensão que configura a expe- riência numa singular estética, que permite permane- cer no que é indeterminado na ordem do conhecimento: uma estética dramática, relacional, tensional, criati- va e produtiva (expressões, aqui, tomadas como sinó- nimos), porque o teatro dá a ver e a sentir, fala e dá-se em acção. Quer dizer, dá a pensar na totalidade da expe- riência humana.

    A dramaticidade que o teatro tem enunciado é, preci- samente, na minha perspectiva, a procura de ordens outras do conhecimento e do pensamento que, desde o ritual mágico até às performances, tenta concretizar o que escapa à ordem do discurso, não porque renuncie à poesia, mas, ao contrário, porque no dar a ver o que não pode ser visto e no dizer o que não pode ser dito, desafiam a persistir num modo poético de ser mundo, para fazer mundo. Pois o teatro faz mundo, na medi- da em que não se limita à representação reprodutiva mas procura numa experiência total e enraizada – em dança, em palavra, em música, em actores, em públi- co, em acção, etc. – uma produção cultural tensional, relacional entre o que se sabe e o que não se sabe, entre

    o que se conhece e o que não se conhece, recuperando

    o conhecimento em existencial dramaticidade, uma originalidade que reflete a necessidade de um conhe- cimento demorado e suave, ao superar o fixismo da representação. O que reclama por uma antropologia da infância ou em origem pedagogicamente construída em aprendizagem, em visão de origem7. Uma antropologia de liberdade e da criação que não pode esquecer a den-


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  7. – A experiência na infância precede a palavra que a nomeia.

    sidade antropológica expressa pelo jogo: o desafio, a criatividade, a procura do extravasamento de qual- quer delimitação.

    A criança é o exemplo da função antropológica do jogo, ela é o paradigma da criação pura, transforma a razão em vontade criar e jogar8. Face aos determinis- mos, o jogo enceta registos do possível, sublinhando a razão lúdico-estético-filosófica. Também do ponto de vista pedagógico, o jogo assume uma dupla função: é meio e expressão de si próprio e, ainda, como jogo de regras é meio de aprendizagem.

    Para Schiller o conceito de jogo compreende preci- samente todo o desenvolvimento de forças que não tenha objeto nem seja necessário. O jogo possui um carácter estético, sublinha-se a relação do jogo com o Belo: “o ser humano só joga quando realiza o signifi- cado total da palavra homem, e só é um ser plenamen- te humano quando joga” (Schiller, Carta XV). Trata-se da celebração mais completa da humanidade.

    Schiller não preconiza nas Cartas sobre a Educação Estéti- ca uma formação especificamente artística nem uma teoria ou crítica de arte, mas uma formação integral do ser humano. A estética permanece no espaço da an- tropologia. O homem é uma unidade de consciência e corpo, de razão e sensibilidade.

    O ser humano deve apenas jogar com a beleza, só esta possibilita uma aproximação ao ideal de harmonia e plenitude devendo separar com rigor os domínios da realidade e da aparência estética. E a aparência esté- tica é o próprio jogo; é a própria natureza que eleva o homem da realidade à aparência. Talvez o erro tenha consistido (ao longo de boa parte da história da filoso- fia), ao violentar a realidade, em confundir a verdade com a representação e com a conceptualização, em impor o entendimento ao real, à natureza, cercando-

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    -os, diminuindo-os e destituindo-os da sua força. A ilusão não é engano, nem confusão entre o verdadeiro e o falso, mas dota de plasticidade a própria realidade. Também para Teixeira de Pascoaes a verdade é expe- rienciada no plano do aparecer. No aparecer, o even- to é o lugar do sentir, porque momento genésico, que não separa ainda sujeito e objecto. O plano do apare- cer implica a fundamental destrinça entre realidade e verdade. A verdade situa-se no nível da intimidade com o Ser. A verdade situa-se numa anterioridade em relação à realidade, na medida em que tanto está ocul- ta nas coisas como para além delas. A aparição, a ver-


  8. – Do latim jocus, jogo significa divertimento, atividade recreativa mais ou menos espontânea. O jogo pode ser entendido como atividade espon- tânea e gratuita, livre e sujeita a regras, que em si mesma encontra a sua finalidade.

dade dá-se, acontece, desoculta-se, superando a ilusão da aparência, que é mentira, a face física das coisas. Também para Schiller a aparência estética como jogo distingue-se do real estético, na medida em que, nes- te, a aparência só é aflorada uma vez que no real estéti- co os objectos estão submetidos a um estado de neces- sidade e utilidade. Sendo a aparência a própria beleza logo não pode estar sujeita à necessidade e utilidade. E a liberdade só brota quando a realidade deixa de ser vista na sua vertente de necessidade. Aspirar a uma aparência autónoma exige liberdade efectiva e mais energia que aquela que necessitamos para nos limitar- mos à realidade. O jogo é um exemplo desta liberdade; no jogo a riqueza de energia constitui esse estímulo, quando a vida supérflua se incentiva a si própria a agir (Schiller).

Experiência e infância: em torno de duas especificidades filosóficas da educação que podem promover a com- preensão de um mundo símbolos, para lá das coisas. Uma não-linguagem por comparação com as certezas da discursividade. «Bom é que não se confunda “sím- bolo” com “coisa-sinal-representativo-de-outra-coisa” (...)» (Sousa, 1984, p. 125, nota 178) .

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Símbolo comporta o sentido do todo: «quando se pensa ou age simbolicamente, o pensamento e a ação não se detêm nem se demoram na parcialidade – saltam (mortalmente para as coisas) para a totalidade que, só ela, é divisível em partes. Nenhum símbolo é “coisa”, nem qualquer das suas partes, se, na verdade, faz parte de um todo» (idem, ibidem, pp. 125, 126). Porque o nosso esforço e luta é «saber como se vive num mundo de símbolos, pois, ao que parece, só nos ensinaram a viver num mundo de coisas» (Sousa, 1984, p.20).

Para sempre recomeçar

Experiência e Infância são apenas duas das especificidades filosóficas da educação que podem ser apontadas com- plementarmente a outras com distintas configurações, mas pretende-se apenas sugerir possibilidades que questionem mesmidades, monolitismos e, mesmo, modelos pedagógicos, que muitas vezes tomamos como os mais adequados. Trata-se, pois, de tentar equacionar a experiência de pensar sempre em alternativa, como possibilidade de conceber e imaginar de outra maneira; equação fundamental para toda a educação que, entre discursos e práticas, questiona ordens estabelecidas. Os modos de compreender o mundo podem superar li- mites, estabelecer contornos e contrastes outros, jogar e, enfim, revelar, lembrando Foucault, outras ordens, segundo as quais se organizam as coisas, outras rela- ções entre as palavras as coisas.

Michel Foucault, em História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres, perguntava: de que valeria ao saber se ele asse- gurasse apenas a aquisição de conhecimentos e não o descaminho daquele que conhece?

Pergunto: de que valeria o saber se nos impossibilitas- se um acesso tensional e lúdico à originária infância? Num regime sempre aberto a novas formas de pensar, a educação pode sempre, em recomeço, engendrar intem- pestivamente o que está por vir.


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