ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: MEDIAÇÃO, VIVÊNCIA E SENSIBILIDADE


Roberta Aline Costa Oliveira

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Brasil

Patrícia Stecca Reis de Andrade

S A B E R & E D U C A R 3 3 2 0 2 4

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Brasil

Marta Regina Paulo da Silva

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Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Brasil


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Resumo:


Este artigo apresenta o relato de experiência sobre práti- cas artísticas desenvolvidas com crianças de dois (2) a qua- tro (4) anos em uma creche municipal de Santo André/SP, cujo objetivo central é refletir sobre abordagens artísticas que transcendem a reprodução mecânica, promovendo vivências significativas e enriquecedoras para as crianças. Discute-se a importância da arte nos processos de desenvol- vimento e aprendizagem infantil, ressaltando seu papel na promoção da curiosidade, criatividade, sensibilidade e pen- samento crítico. O relato compartilha práticas realizadas com as crianças, englobando a exploração e criação a partir de diferentes materialidades e suportes, a apreciação das produções artísticas e atividades relacionadas à temática indígena. Enfatiza-se também experiências em áreas ex- ternas e em contato com a natureza. O estudo dialoga com referências teóricas da área da infância e da arte. Os resulta- dos indicam maior envolvimento e participação dos(as) in- fantes nessas atividades, bem como mudanças comporta- mentais, como maior respeito e cuidado com as produções dos(as) colegas. A organização dos ambientes e das propos- tas são essenciais para garantir que as vivências artísticas sejam integradas de maneira holística na rotina da creche, contribuindo para uma aprendizagem que valorize e poten- cialize todas as dimensões do desenvolvimento infantil. Assim, evidencia-se que a criação de ambientes favoráveis à exploração e expressão artística demanda a presença de educadores(as) sensíveis e capacitados(as), cuja própria formação estética deve ser priorizada. Portanto, conclui-se que práticas artísticas bem estruturadas têm um impacto profundo e multifacetado no desenvolvimento integral das crianças. Essas práticas não apenas estimulam a inventivi- dade e a expressão pessoal, mas também promovem habili- dades sociais, cognitivas e emocionais. Dessa forma, torna-

-se evidente a importância de investir na formação contínua de educadores(as), capacitando-os(as) como mediadores(as) eficazes de experiências como as apresentadas neste artigo.


Palavras-chave:

Arte; Creche; Prática Pedagógica; Formação Docente.


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DATA DE SUBMISSÃO: 2024/09/08

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DATA DE ACEITAÇÃO: 2024/12/19

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Abstract:


This article presents an experience report on artistic prac- tices developed with children aged two (2) to four (4) years in a municipal daycare center in Santo André/SP, who- se main objective is to reflect on artistic approaches that transcend mechanical reproduction, promoting mea- ningful and enriching experiences for children. The ar- ticle discusses the importance of art in the processes of child development and learning, highlighting its role in promoting curiosity, creativity, sensitivity and critical thinking. The report shares practices carried out with children, encompassing exploration and creation from di- fferent materials and supports, the appreciation of artistic productions and activities related to indigenous themes. It also emphasizes experiences in outdoor areas and in contact with nature. The study dialogues with theoreti- cal references in childhood and art. The results indicate greater involvement and participation of children in these activities, as well as behavioral changes, such as greater respect and care for the productions of their peers. The or- ganization of environments and proposals are essential to ensure that artistic experiences are integrated holistically into the daycare routine, contributing to learning that va- lues and enhances all dimensions of child development. Thus, it is evident that the creation of environments that are favorable to artistic exploration and expression requi- res the presence of sensitive and qualified educators, who- se own aesthetic training should be prioritized. Therefore, it is concluded that well-structured artistic practices have a profound and multifaceted impact on the integral deve- lopment of children. These practices not only stimulate inventiveness and personal expression, but also promote social, cognitive and emotional skills. Thus, it becomes evident the importance of investing in the continuous training of educators, training them as effective media- tors of experiences such as those presented in this article.


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Keywords:

Art. Daycare. Pedagogical Practice. Teacher Training.


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Introdução

A arte está intrinsecamente ligada ao nosso cotidiano, manifestando-se em diversos espaços e por meio de di- ferentes linguagens, como murais, danças, pinturas, literatura, teatro, música, cinema, exposições, entre outras formas de expressão. Contudo, no contexto das instituições educacionais, as práticas artísticas ainda são frequentemente tratadas de maneira esporádica. Em muitos casos, observa-se uma utilização restrita da arte, limitada à organização de produções vinculadas as datas comemorativas, usando-a como um meio para enfeitar ou decorar os espaços educacionais e com o ob- jetivo apenas de ampliar o desenvolvimento da coorde- nação motora por meio de desenhos prontos e estereo- tipados, não havendo uma preocupação em compreen- dê-la como uma forma de expressão cultural carregada de história e de valores, tanto estéticos como poéticos, capazes de potencializar a linguagem dos sentidos e das emoções, bem como a formação cultural e crítica dos sujeitos.

Para Luciana Esmeralda Ostetto (2007a), o trabalho com datas comemorativas na educação é marcado pela fragmentação dos conhecimentos, com temas sendo abordados de forma superficial e descontextualizada, como a primavera em uma semana e o Dia da Criança na seguinte. Além disso, atividades como “trabalhi- nhos”, “lembrancinhas”, danças e teatros são frequen- temente realizadas sem a devida reflexão por parte do(a) educador(a), que não considera o significado des- sas práticas para as crianças ou seu valor enriquecedor. Esse padrão tende a se repetir anualmente, refletindo um trabalho pouco inovador e repetitivo.

Devido à sua característica intrínseca de nos confron- tar com o inusitado e o inesperado, a arte, segundo Sandra Richter (2004), cria oportunidades para o exer- cício experimental da liberdade, visto que a capacidade humana de criar e inventar algo, vai além da realidade, sendo facilitada pela imaginação. Esta, ao transportar nossa curiosidade para o desconhecido, serve como fon- te para toda inquirição filosófica, artística e científica. No contexto da Educação Infantil, a arte se faz funda- mental para o desenvolvimento e aprendizagens das crianças, proporcionando espaço para a expressão, criatividade e sensibilidade. Por meio das diferen- tes linguagens artísticas, as crianças exploram novas formas de se comunicar e compreender a si mesmas, os(as) outros(as) e o mundo ao seu redor, ampliando as- sim suas leituras de mundo. Esse aprendizado ocorre por meio dos sentidos que desenvolvem em suas ações,

revelando conhecimento em processos de descoberta e envolvimento. Experiências estéticas nutrem as emo- ções, sensações e percepções, gerando uma energia transformadora que promove empenho, entusiasmo e criatividade. Nesse contexto, a criança é vista como uma agente ativa da fantasia e da criatividade, necessi- tando de ambientes que favoreçam o desenvolvimento do pensamento, das emoções, da inteligência, dos va- lores e da imaginação criativa (Finocchiaro, 2020).

Em função de tal importância, nas últimas décadas, o papel da arte na Educação Infantil tem recebido maior reconhecimento nos documentos orientadores, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (Brasil, 2010) e a Base Nacional Co- mum Curricular - BNCC (Brasil, 2017), que orientam quanto à necessidade de oportunizar experiências ar- tísticas que estimulem a autonomia, a experimentação e o protagonismo infantil.

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Apesar dos avanços na legislação, existem desafios re- levantes na implementação efetiva de práticas peda- gógicas que valorizem a arte como parte integrante do currículo na Educação Infantil. Entre eles estão: a falta de formação específica dos(as) educadores(as) em arte, o que dificulta o planejamento e mediação de ativida- des artísticas de maneira consistente com os objetivos pedagógicos; a escassez de recursos materiais adequa- dos, que podem limitar as possibilidades de exploração artística; e sobrevalorização de atividades que visam a alfabetização e a introdução aos conceitos matemáticos em detrimento das experiências artísticas, que assu- mem um papel secundário ou meramente recreativo. As crianças, como seres curiosos, questionadores, ex- ploradores, merecem ambientes que estimulem sua inteligência, criticidade, imaginação e criatividade. Professores(as) precisam estar preparados(as) para ofere- cer vivências significativas, por meio das múltiplas lin- guagens da arte, criando contextos que promovam o de- senvolvimento propositivo e investigativo das crianças. Nessa perspectiva, este relato compartilha o trabalho com arte realizado em uma creche municipal de San- to André, São Paulo, com crianças de dois a quatro anos. O objetivo foi o de promover uma prática artís- tica qualificada que transcenda a mera reprodução e o passatempo, oferecendo às crianças vivências ricas e libertadoras. Dessa forma, esperamos contribuir com a reflexão sobre a arte na creche, reconhecendo-

-a como elemento fundamental para a construção do conhecimento sensível, que enriquece a capacidade de observação e amplia as leituras de mundo das crianças.

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Vivências com Arte na Creche

As crianças, ao ingressarem na Educação Infantil, já tiveram seus primeiros contatos com as linguagens da arte. Elas trazem consigo o que Stella Barbieri (2012) de- fine como um conjunto único de experiências que in- fluencia sua linguagem e seu discurso, moldado pelas cores, movimentos, cheiros e sons que já vivenciou. Es- sas experiências precisam ser respeitadas e potencializa- das nos espaços educativos, de modo a contribuir para a construção do conhecimento sensível da criança.

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Sendo assim, é fundamental que os(as) professores(as) reconheçam e valorizem esses saberes e fazeres das crianças, estimulando sua curiosidade e criativida- de por meio de contextos investigativos em que elas possam explorar, pesquisar, fluir e produzir arte. Por contextos investigativos compreendemos espaços or- ganizados com elementos que desafiem as crianças a questionar, a explorar, a pensar, a conhecer, a estabe- lecer múltiplas conexões por meio dos seus diferentes sentidos. São espaços que provoquem as crianças a se reconhecerem como pesquisadoras, exploradoras. E aqui é importante ressaltar que “O ato de explorar se refere intrinsecamente à vida” (Guerra, 2022, p. 57). Assim, embora o objetivo do trabalho com arte na Edu- cação Infantil não seja formar artistas, é fundamental favorecer o acesso às múltiplas linguagens da arte, ex- pondo as crianças a diferentes formas de expressão ar- tística. Essas atividades artísticas com as crianças não precisam sempre resultar em obras físicas para serem expostas, conforme elucida Anna Marie Holm (2015b). O foco deve ser a exploração e a interação, buscando descobertas conjuntas. Isso pode ocorrer em qualquer lugar e deve ir além dos detalhes, promovendo uma experiência rica e contínua, similar a uma sinfonia que nos toca e motiva a novas criações. Para a crian- ça, a arte precisa ser vivida e marcada por experiências significativas. Nas palavras dessa autora,


Quando se trabalha com a primeira infância, Arte não é algo que ocorra isoladamente. Ela engloba: controle corporal, coordenação, equilíbrio, motri- cidade, sentir, ver, ouvir, pensar, falar, ter segu- rança. E ter confiança para que a criança possa se movimentar e experimentar. E que ela retorne ao adulto, tenha contato e crie junto. O importante é ter um adulto por perto, coparticipando e não con- trolando (Holm, 2007a, p. 12).


A liberdade de criação permite às crianças desenvol- verem sua autonomia, pois o ato de criar exige refletir e pesquisar, o que possibilita que a imaginação se ex- panda e crie mundos e possibilidades de ser e sentir. A arte convida a imaginação a atuar, ultrapassando as limitações do cotidiano.

Essa compreensão do trabalho com arte na Educação Infantil perpassa pelas concepções de criança e in- fância. Ao reconhecer a criança como um ser social, histórico e cultural, capaz de criar, imaginar e expres- sar-se de forma única (Brasil, 2010), valoriza-se o pro- cesso criativo e estético como fundamental para seu desenvolvimento integral. A creche, nesse contexto, torna-se um espaço privilegiado para que as crianças explorem diferentes linguagens artísticas, experi- mentando os diferentes materiais, texturas e cores, desenvolvendo sua sensibilidade e imaginação. Essa perspectiva pedagógica respeita os princípios que de- vem embasar as propostas pedagógicas de Educação Infantil, a saber:


Ostetto (2017b) assevera que o conceito estético vai além do âmbito artístico, abrangendo a abertura para novas experiências, formas de conhecimento e a práti- ca de acompanhar, dialogar e escutar as crianças. Nes- se processo dialógico, o papel dos(as) educadores(as) é fundamental, no sentido de escutar as perguntas que as crianças colocam e propor contextos em que pos- sam explorar e investigar, experimentando e testando suas hipóteses. A escuta, nessa concepção, trata-se de uma postura de abertura ao(à) outro(a), de respeito e compromisso ético, estético e político com todos(as) envolvidos(as) no processo educacional das crianças (Silva et al, 2023).

O trabalho com arte na educação das crianças que va- loriza a autonomia e a espontaneidade infantil, con- tribui para a construção de sujeitos críticos, criativos, propositivos e protagonistas em suas escolhas, capa- zes de transformar o meio que estão inseridos e afe- tando positivamente suas relações pessoais.

Com esse propósito, a experiência relatada neste ar- tigo resulta de um processo formativo vivenciado por um grupo de professoras de creche nos anos de 2022 e 2023, cujo objetivo foi o de refletir sobre as propostas de artes que ocorriam no ambiente escolar, tais como: recorte e cole, desenho livre, pintura com tinta gua- che, modelagem com massinha, entre outras, no in- tuito de ressignificar e qualificar as práticas artísticas. Nesse sentido, visando oportunizar experiências en- riquecedoras em artes visuais para as crianças e que de fato garantissem o direito às diversas formas de expressão por meio das múltiplas linguagens, as pro- fessoras organizaram propostas que transcendessem o espaço da sala de referência e oportunizassem outras formas de viver arte, por meio de diferentes materia- lidades e contextos. Para este artigo, selecionamos al- guns contextos específicos para discussão.

A experiência aconteceu em uma creche localizada na região periférica da cidade de Santo André, onde duas professoras do período da manhã tiveram a intenção de modificar seus planejamentos a partir do percur- so formativo vivenciado, sendo 1 professora do 1º ci- clo inicial com a turma composta por 18 crianças com idades entre 2 anos e meio até 3 anos e 6 meses e outra turma do 1º ciclo final composta por 24 crianças com idades entre 3 anos e meio até 4 anos e 8 meses.


Mulher cortando bolo

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Figura 1: Manipulando e criando com tintas naturais. Fonte: Registro das autoras


As fotos da Figura 1 demonstram um fragmento do percurso artístico em que tintas naturais foram pro- duzidas com as crianças a partir da intenção de con- feccionar um painel sobre a primavera, visto que es- tavam pesquisando as estações do ano. Nessa inves-

tigação as crianças observaram os ciclos da natureza, compararam a diferença da iluminação e posição solar durante os meses e, na estação da primavera, após co- nhecerem o ciclo das flores e frutos, decidiram pes- quisar sobre alguns alimentos advindos da terra e que poderiam se transformar em tinta. A beterraba foi a escolhida, assim como folhas e flores das árvores caí- das no chão do quintal da creche, resultando em tin- tas aquarela floral vermelha, que após produzidas fo- ram utilizadas pelas crianças em suas pinturas. Para Holm (2007a, p. 12),


Pode-se criar de várias maneiras: brincar ao mes- mo tempo que se cria um desenho. Sentir outros materiais e outros lugares. Experimentar. Ao traçar caminhos novos e desconhecidos, a crian- ça desenvolve sua sensibilidade e adquire uma consciência maior de todos os sentidos. Isso é fantástico. A arte dos pequenos deve ser vista em um contexto amplificado.


Trabalhar com arte na creche significa criar um espa- ço-tempo de imaginação, onde pedras, galhos secos, folhas e tantos outros elementos podem ser ressigni- ficados, oportunizando ricas vivências com as mais diversas linguagens (coporais, artisticas, sensoriais, simbólicas) em interações com outras crianças e adultos(as). Também aqui, oferecer contextos nos es- paços externos, especialmente em meio à natureza, constitui-se em uma experiência prazerosa, como se observa na Figuras 2.


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Figura 2: Vivência na área externa. Fonte: Registro das autoras


Essas propostas, realizadas ao ar livre, reconhecem a importância e a urgência do “desemparedamento da infância” e fortalece a relação das crianças com a na- tureza. Segundo Léa Tiriba (2010, p. 9),

Extrapolando o compromisso com a transmissão de conceitos via razão e buscando abranger ou- tras dimensões – corporais, espirituais, emocio- nais, estéticas – necessitamos de uma educação infantil ambiental que assuma os sentidos como fontes de prazer, felicidade e conhecimento. Essa perspectiva inclui os caminhos da arte, cami- nhos que passam pelo contato estreito e íntimo com a beleza de céus estrelados, com os mistérios de trovões e tempestades; caminhos atentos às manifestações da natureza animal e vegetal, que incentivam as crianças a recriá-las singularmen- te por meio de desenhos, pinturas, esculturas em areia e barro; que podem ser dançadas, mu- sicadas, dramatizadas, representando diversas formas de expressão humana.


Assim, uma vivência que poderia ter sido realizada na sala referência ou no ateliê foi planejada e vivida na área externa, ampliando a liberdade de expressão e autonomia. Do lado de fora as crianças puderam sentir o calor do sol, escutar os cantos dos pássaros, aguçando a sensibilidade e o processo criativo. Valerio e Silva (2021, p. 412) defendem a urgência de “derru- bar” as paredes de cimento (e também as simbólicas) no sentido de reconhecer a natureza como um “[...] convite à aventura, um laboratório para investigações pela diversidade de nuances, cores, texturas, formas, cheiros, sons, temperaturas, sabores, pesos, tama- nhos e infinitas possibilidades de exploração, inves- tigação, criação, inventividade e transformações com seus elementos”.

Entre essas atividades desenvolvidas do lado de fora, está a proposta realizada com a turma sobre a Arte in- dígena e nela, como produzir tintas naturais a partir dos elementos da natureza. Nesse trabalho, realizado ao longo de um semestre, as crianças conheceram a culinária indígena, as brincadeiras, as músicas, as histórias e a arte, proporcionado a elas contato com a diversidade cultural, garantindo assim a educação das relações étnico-raciais desde a primeira infância. A atividade com tintas teve origem a partir do interes- se e curiosidade das crianças em conhecer as sementes do Urucum. Após uma roda de conversa sobre as possi- bilidades de uso da semente, a escolha pela oficina de produção da tinta foi unânime. Assim, foi realizado o processo de transformação da semente em pó e depois em líquido. No momento de experimentar a tinta con- feccionada para realizar o registro, foi disponibilizado no gramado, na área externa da creche, o papel Craft e diferentes riscantes como: pincel, graveto e pedras.


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Figura 3: Vivência na área externa. Fonte: Registro das autoras


O ambiente esteticamente preparado também fez a diferença, pois as crianças, ao chegaram e observar a organização da proposta, demonstraram encanta- mento por meio dos sorrisos. Essa foi a maneira das professoras acolherem, com afeto, o desejo das crian- ças em estar no gramado realizando as vivências.

Pensar esteticamente esses ambientes, selecionan- do as materialidades que irão compor os contextos, a partir da escuta e observação das crianças, transforma esses espaços em laboratórios para suas investigações sobre arte na e com a natureza. Nessa vivência, as crianças trouxeram elementos que contribuíram para suas pesquisas, selecionando folhas, pedrinhas, gra- vetos, sementes, e juntas foram alimentando as pos- sibilidades a partir de alguns materiais que já estavam disponibilizados no chão.

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Cabe ressaltar que cada criança tem seu tempo de pes- quisa e suas preferências. Dentre suas escolhas, pos- suem maneiras distintas de manifestar suas expres- sões. Em uma proposta de experimentação e explora- ção de diferentes materialidades (Figura 4), algumas crianças preferiram explorar os elementos da nature- za como a terra, tocando e sentindo com as mãos, ou- tras preferiram colecionar as pedrinhas comparando seus tamanhos e as diferentes cores e outras optaram por interagir com os dinossauros e carrinhos brincan- do simbolicamente, alimentando-os com as plantas e sementes.


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Uma imagem contendo pessoa, mesa, comida, criança

Descrição gerada automaticamente

Figura 4: Bandeja de experimentação Fonte: Registro das autoras


A maneira como cada criança decide se expressar significa sua escolha por algo para expor seus dese- jos, necessidades, pensamentos, sentimentos etc. Concordamos com Marcia Aparecida Gobbi e Mônica Appezzato Pinazza (2014, p. 42) que


As crianças criam, como num haicai, a represen- tação de mundos e coisas deles, como também sentimentos, emoções, letras e suas formas. Os traços e as configurações que suas composições vão adquirindo mostram suas emoções e abar- cam o mundo da imaginação, como numa obje- tiva que capta aspectos da realidade circundante e o mundo interior, convertendo em matéria vi- sível diferentes formas.


Além do cuidado com a organização dos contextos in- vestigativos, a maneira como são expostas as produ-

ções das crianças também nos diz sobre as concepções que permeiam o cotidiano das instituições. É preciso um olhar cuidadoso para a mensagem que queremos transmitir, a fim de cultivar a criticidade, o respeito e a valorização pelas diversas formas de expressar os pensamentos e sentimentos.

Na vivência retratada na Figura 5, o cubo de madeira foi preparado com plástico transparente, justamente para valorizar o contato com luzes e cores, sendo ex- posto na área externa da creche, em um local de pas- sagem das famílias, crianças, funcionários(as) e co- munidade local. Desse modo, no momento da entrada e saída as pessoas poderiam apreciar a produção das crianças, que por sua vez relatavam como havia ocor- rido a proposta, explicando ter desenhado igual a um artista que pinta painéis pela cidade, usando a técnica do borrifador para simbolizar o spray, não desenhado na folha de papel e sim em outro lugar, que era pos- sível ficar em pé e ver o(a) amigo(a) do outro lado da “parede invisível”.


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Figura 5: Mural das marcas com diversas materialidades. Fonte: Registro das autoras


Um dado que despertou a atenção foi referente a postu- ra das crianças frente aos murais e painéis da unidade escolar. Em certos momentos era comum as crianças puxarem o que estava sendo exposto, o que terminava rasgando ou danificando. No entanto, com o trabalho sistemático com a arte, as crianças começaram a se

perceber nas produções expostas nos murais e a apre- ciar suas produções e dos(as) demais colegas, apresen- tando comportamentos de fruição, como na Figura 6.


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Figura 6: Apreciação dos murais e painéis Fonte: Registro das autoras


Assim como as propostas pedagógicas são elaboradas para ampliar o contato da criança com o mundo, os espaços devem ser organizados esteticamente, agu- çando a curiosidade para descobertas. De acordo com Mara Lúcia Finocchiaro da Silva (2020), as crianças aprendem através dos sentidos que desenvolvem em suas atividades, revelando conhecimento por meio de descobertas e envolvimento. As experiências estéticas são fundamentais para nutrir emoções, sensações e percepções, gerando uma energia transformadora.

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A arte na Educação Infantil deve ser vista, portanto, como um meio poderoso de aprendizagem e desen- volvimento, e não apenas como uma atividade com- plementar. Ao promover experiências artísticas sig- nificativas, estamos contribuindo para a formação de indivíduos mais criativos, empáticos e conscientes de seu papel na sociedade. Nesse sentido, é fundamental que ela seja cuidadosamente planejada para propor- cionar condições adequadas de tempo, espaço e mate- rialidades. O ambiente deve ser convidativo às crian- ças, incentivando a exploração, a experimentação e as descobertas, elementos essenciais para a liberdade criativa. Isso porquê:


Apresentar desafios para os quais não se espera uma única resposta é algo distinto de oferecer uma atividade “para fazer assim”, para chegar naquilo que o professor determinou que seria o produto final. Implica em considerar especifici- dades de um campo de conhecimento que não se define pela norma, pois não há regras fixas no

modo de produção da arte, suas linguagens são territórios sem fronteiras. Pesquisar, mergulhar no desconhecido para testar novos materiais e formas, experimentar diferentes elementos ain- da não apropriados, integram o fazer artístico (Ostetto, 2018c, p. 3)


O papel do(a) professor(a) nesse processo é ex- tremamente importante, uma vez que cabe a ele(a) organizar o ambiente de aprendizagem, dando su- porte às crianças em suas criações. Essa tarefa exige uma profunda compreensão da teoria e da prática educativa, para que possa criar um ambiente de in- teração positivo e enriquecedor, tanto entre as crian- ças, quanto entre estas e os(as) adultos(as) da creche. Além de planejar contextos investigativos em arte que possibilitem às crianças mergulharem no desconhe- cido e experimentar novas formas de sentir, pensar e comunicar o mundo, considerando seus interesses e necessidades, os(as) docentes também precisam acompanhar a trajetória de aprendizagem delas, por meio da documentação pedagógica, o que implica em observação e uma escuta sensível.

O trabalho com arte desde a perspectiva aqui apresentada exige um(a) professor(a) reflexivo(a) e comprometido(a) com a aprendizagem de seus/suas educandos(as). Para tanto, ele(a) precisa de um pro- cesso de formação sólido e contínuo que lhe ofereça subsídios teórico-metodológicos para desenvolver prá- ticas pedagógicas inovadoras e sensíveis. Precisa, so- bretudo, “[...] alimentar sua expressão e conectar-se com ela, precisa reconquistar o seu poder imaginati- vo, se pretende e deseja garantir a criação, a expressão das crianças (Ostetto, 2018c, p. 12). Precisa redescobrir sua dimensão brincante, que passa pela redescoberta das suas linguagens e os modos de ler e comunicar o mundo”.

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Considerações Finais

A arte funciona como uma ferramenta acessível e de- safiadora para questionar o mundo ao nosso redor e encontrar novas perspectivas. Ela permite uma visão ampliada da vida e do mundo, possibilitando uma compreensão mais profunda e auxiliando na identifi- cação de novas conexões entre as relações pessoais, a natureza e os objetos.

No cotidiano da creche a arte proporciona múltiplos benefícios para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Ela oferece experiências ricas e significa- tivas que transcendem a simples ocupação do tempo, contribuindo para a formação integral das crianças. Quando as práticas artísticas são alinhadas a contex- tos investigativos e reflexivos, elas promovem a curio- sidade, a criatividade e o desenvolvimento em múlti- plas dimensões. Para que tais objetivos sejam alcan- çados, é fundamental que os(as) educadores(as) sejam devidamente capacitados(as) e que os ambientes de aprendizagem sejam planejados para favorecer a ex- ploração artística. Dessa forma, a arte pode tornar-se uma parte essencial e natural da vida das crianças na creche, visto que a arte é um processo contínuo e co- tidiano.

Os(as) docentes desempenham um papel fundamental nesse processo ao incentivar a criatividade e as formas de expressão das crianças. Isso inclui a apresentação de novos materiais, o levantamento de questões sobre esses materiais e a criação de contextos significativos para a expressão. É imprescindível evitar estereótipos e a reprodução mecânica de trabalhos, oferecendo um ambiente que estimule a criação individual e autênti- ca de cada criança.

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Esperamos que este estudo fomente uma reflexão so- bre as vivências artísticas na Educação Infantil, visan- do qualificar as práticas pedagógicas e superar a práti- ca de “desenhos prontos” nas instituições. Almejamos que os contextos investigativos sejam cada vez mais oportunizados, promovendo a liberdade de imaginar, criar, brincar, explorar e se expressar. Além disso, en- fatizamos a importância da experiência corporal e do convívio amoroso, estético e propício à pesquisa e às descobertas nas creches, assegurando que as crianças se sintam felizes e realizadas em suas conquistas.

Nosso objetivo foi oportunizar vivências em que a in- fância fosse repleta de descobertas e criações. Deseja-

mos que, por meio de gestos, palavras e outras formas de expressão, as crianças construam um mundo de significados e vivências únicas. Ao valorizar a expe- riência e a imaginação, buscamos criar um espaço onde a criança seja protagonista de sua própria apren- dizagem, experimentando e transformando o mundo ao seu redor.

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Referências


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