DOS CONDICIONAMENTOS ADMINISTRATIVOS AOS CONSTRANGIMENTOS PEDAGÓGICOS NO ENSINO SUPERIOR
Adalberto Dias de Carvalho
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S A B E R & E D U C A R 3 4 2 0 2 5
ISCET - Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo
Bolonha trouxe a uniformização dos principais parâmetros dos ciclos de estudo no ensino superior europeu, designadamente no que se refere à sua duração e caráter profissionalizante. No caso português, tal significou o encurtamento dos períodos de formação e a adoção de um alegado maior pragmatismo curricular.
Volvido um tempo de aplicação suficientemente longo de aplicação do paradigma de Bolonha, importa fazer o seu questionamento crítico, recorrendo-se para este efeito à mobilização e aplicação de critérios hermenêuticos, epistemológicos e antropológicos que possam validamente questionar a própria legitimidade e validade pedagógicas das reformas introduzidas.
Bolonha; Formação; Cultura; Cidadania; Profissão.
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DATA DE SUBMISSÃO: 2025/06/18
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DATA DE ACEITAÇÃO: 2025/06/30
Bologna brought the standardisation of the main pa- rameters of European higher education study cycles, particularly in terms of their duration and profession- al nature. In the Portuguese case, this meant shorten- ing training periods and adopting an allegedly more pragmatic curriculum.
After a sufficiently long period of application of the Bologna paradigm, it is important to critically ques- tion it, mobilising and applying hermeneutic, epis- temological and anthropological criteria that can validly question the very legitimacy and pedagogical validity of the reforms introduced.
Bologna; Training; Culture; Citizenship; Profession.
Introdução e delineamento da problemática
Bolonha trouxe a uniformização dos principais parâmetros dos ciclos de estudos no ensino superior europeu, designadamente no que se refere à sua duração e dimensão prática. No caso português, tal significou o encurtamento dos períodos de formação e a adoção, em nome de um reforço da sua vocação profissionalizante, de um pressuposto pragmatismo curricular.
Volvido um tempo de aplicação suficientemente longo do paradigma de Bolonha, impõe-se fazer, com base numa reflexão de cariz epistemológico e sociológico, o seu questionamento crítico, questionamento este que, em larga medida, deveria ter acompanhado e até precedido as reformas empreendidas.
Aconteceu, porém, que prevaleceram as imposições de uma lógica política, a qual, tornando pedagógicos normativos de inspiração tecnocrática, alcançou hegemonicamente um acatamento generalizado dos seus princípios e desígnios curriculares junto dos próprios agentes do ensino superior.
A recusa maioritariamente consolidada e até orgulhosa da formação e investigação pedagógicas no ensino superior, assente na convicção da pretensamente elevada preparação científica dos seus docentes, em contraste com a dos docentes dos outros graus de ensino. A circunstância de os estudantes no superior terem de ser considerados responsáveis por serem adultos, constituiutambémaquiumcondicionamento importante a ter em conta para a compreensão da efetiva pobreza pedagógica com que aí acabámos por nos confrontar. Atualmente, com a sua expansão e democratização, começa também a haver uma evolução humanista, personalista e pragmática de um ensino que perdeu os seus tiques autoritários e elitistas.
Pressupostos críticos
Importa de facto ter sempre presente que, inclusive para se poder considerar uma constantemente pro- clamada abertura à inovação, esta implica que se con- siderem reflexiva e operacionalmente os seguintes questionamentos epistemológicos e antropológicos preliminares:
A educação, ainda que imbuída de um reducionis- mo cientificista nas suas aceções que se apresen- tam como mais eruditas, tende a oscilar de facto entre propósitos científicos e declarações próprias de um militantismo pedagógico e político, ou seja, entre registos da verdade e da opinião, en- tre a demonstração e a persuasão, entre o provável e o verosímil, entre a dialética e a retórica, sem contudo assumir estas conflitualidades. Confli- tualidades estas que constituem, precisamente com as suas contradições, o cerne de uma valio- sa singularidade epistémica que é, por seu turno, expressão de uma autenticidade humana real e potencial subjacente à riqueza dos projetos e dos processos educativos.
Assim, a educação, por necessidades de legitima- ção e justificação, desenvolve frequentemente, através de processos de recorrência interna, or- todoxias e ortopraxias de forma a superar as po- tenciais conflitualidades entre as construções teó- ricas e as situações concretas que, à partida, en- quanto resultados ou pressupostos, deverão – ou deveriam - legitimar aquelas. Trata-se de procurar ultrapassar as vulnerabilidades de um sistema de- dutivo em que os fundamentos se cofundem com os princípios.
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Decorre das constatações críticas inventariadas nos pontos anteriores, a necessidade de construir e explorar um diálogo entre as objetivações da co- munidade científica e as idealizações próprias de um discurso que mobiliza a educação com vista a uma pretendida realização das potencialidades humanas e das projeções sociais, ou seja, entre as abordagens epistemológicas e hermenêuticas (Rorty, 1988).
Crítica da ocultação do caráter positivo e dinâmico das interações entre os processos de fundamenta- ção e de legitimação por, enquanto não se assu- mir, ainda que no respeito pela sua diversidade estatutária, a mais-valia de uma implícita confli-
tualidade que lhes é inerente, resultar o que, sem mais, se acabará por considerar como interferên- cias retóricas e ilegítimas.
Crise da militância pela crise das ideologias, o que leva a que, em lugar de se orientar a ação, deli- neando-se e mobilizando-se intencionalmente, ainda que especulativamente, ideais e atores, se passe, algo contraditoriamente, a legitimar - ou a contrariar – reativa e mecanicamente projetos e processos emergentes num espaço pedagógico e institucional de inconformismo e voluntarismo que, entretanto, foi deixado vago.
Transição contemporânea da hegemonia episte- mológica de leis prescritivas e necessitantes para leis que, não limitando apenas os possíveis, ge- ram também oportunidades (Callari Galli et al., 2003), implicando conhecer uma interação entre disponibilidades e projetos. Daí a importância crítica da investigação-ação pelo acolhimento que a mesma nos oferece da dialética entre comporta- mentos (im)previstos, (im)previsíveis,(in)deseja- dos e (in)desejáveis.
Consideração do “nomadismo concetual” de De- leuze (2010), o qual admite, no lugar de identida- des prévias essenciais e de regras eternas, as mul- tiplicidades e encontros que, continuamente des- territorializados, evoluem como devires porque alheios à ideia de fundamentos incondicionais. Tal, precisamente no âmbito de um nomadismo concetual que, imbuído de um pendor disruptivo, busca sobretudo as diferenças, sendo criativo e in- submisso diante das estruturas do poder.
Emergência de uma fenomenologia hermenêuti- ca em que o compreender, em busca do sentido do ser, se sobrepõe ao ser, pressupondo a distinção entre sentido e verdade. O sentido orienta o proje- to de compreensão do ser em função do poder-ser, concebido este como o que é na sua possibilidade (Deleuze, 2010). Emerge assim a valorização do papel e estatuto da interpretação.
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Delineamento de uma antropologia da despropor- ção e com ela da hermenêutica por referência ao verosímil e ao horizonte da finitude de um sujeito aberto às possibilidades de sentido do porvir e dos acontecimentos.
Emerge assim o papel da intersubjetividade no contexto de uma racionalidade comunicacional própria de um universo hermenêutico marcado pelo encontro de opiniões, do debate, da argu- mentação e do diálogo.
Uma hermenêutica dos conflitos, inspirada numa
pedagogia hermenêutica, passa a impor-se como um desafio para a educação, exigindo que esta
contribua para a formação de um sujeito capaz de solicitude e, por isso, não submetido a crenças ou verdades objetivas impostas pela ideologia positi- vista.
Daí que, para Gadamer (1999, p, 419), “aquele que compreende não reivindica uma posição superior, reconhece antes que a sua presunção de verdade possa ser posta à prova”.
Limitações do pragmatismo curricular
O referido pragmatismo curricular tem-se traduzido, em demasiados casos, num simplismo concetual e epistemológico, o qual sanciona propostas de ativida- des de aprendizagem estritamente focalizadas e en- caixadas, para um tal efeito, em períodos temporais restritos e muito limitados, em nome de propósitos e de uma produtividade com eficácia imediata. Eficácia esta que se traduz num implícito e grave escamotea- mento da inventariação e desconstrução de conceitos basilares, a par de uma igualmente grave elisão da complexidade dos fenómenos estudados bem como do enquadramento e consequências das intervenções propostas. Importa, pois, destacar:
A utilização descontrolada de noções do senso co- mum, com tudo o que estas encerram de equivocidade e falta de rigor, como conceitos científicos, ganhando as primeiras um estatuto dogmático em tudo contrário à incontornável abertura crítica dos segundos;
A desatenção relativamente à complexidade dos casos em apreço, designadamente no que concerne ao seu desenvolvimento prático, perdendo- se assim a impres- cindível capacidade, inclusive em termos funcionais, para identificar e relacionar organizacionalmente to- dos os constituintes e constrangimentos internos e ex- ternos das situações consideradas e ações delineadas.
A vulgarização de termos que, apresentando-se como expressões ou componentes decisivas de propostas disruptivas, se vão tornando, entretanto, slogans, os quais passam a ficar destituídos, deste modo, do seu pretendido valor alternativo, como é muitas vezes o caso, entre outras, de noções como as de “criativida- de”, “crítica”, “inovação”, “não-diretividade”, “auto- nomia”, “sustentabilidade”, “investigação” e até os que deveriam ser apenas instrumentos pedagógicos como a “inteligência artificial”. Por acréscimo, as- sociam-se, igualmente muitas vezes, atitudes que acabam também por ser hegemónicas e, portanto, implicando a exclusão dogmática de quaisquer alter- nativas, sendo que existem sempre perspetivas dife- renciadoras, pelo menos de acordo com as temáticas, os contextos comunitários e os protagonistas, não de- vendo assim existir a pretensão de se delinear e prati- car metodologias inovadoras de pendor universal que, assim, retomariam o pendor ideológico autoritário das chamadas pedagogias tradicionais.
Em busca de procedimentos pedagógicos humana e academicamente profícuos
Na tentativa de superar os impasses inventariados, será decisivo aceitar-se, antes de mais, um polimor- fismo pedagógico a traduzir-se, desde logo, no quo- tidiano educativo por uma “variabilidade didática”, conforme identificou lucidamente Marc Bru, conjun- tamente com a emergência e exploração formativa do paradigma da complexidade.
Com o polimorfismo pedagógico sustenta-se uma abertura positiva a diversas vias de conceção e orga- nização dos processos educativos, entendida aquela como expressão epistemológica da educação enquan- to uma panóplia de organizações objetivas que, como tais, contêm dinâmicas evolutivas e conflituais. A se- cundarização metodológica destas dinâmicas acarreta necessariamente a alienação da própria natureza dos processos educativos.
Como acentuou Henri Atlan (1991):
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o complexo reaparece, com o seu caráter de com- plexo, sempre que empreendemos sem cessar uma espécie de combate contra a natureza na ânsia de a dominar. É a nossa preocupação de simplificação racional da natureza que nos leva a descobrir o complexo nas coisas, quando essa preocupação se confronta com os seus próprios limites, com as defesas que as coisas lhe opõem. (Tradução própria, p. 38)
É neste contexto que propomos a adoção da “via exódica” delineada por Michel Serres (1985) como meio de formação, com a qual deveremos desenvolver uma via de problematização e confrontação incessantes re- lativamente às perturbações presentes nos próprios percursos formativos e decisórios, em vez da busca de vias metodológicas de estabilização racionalista que, de um modo ou de outro propõem a secundarização e até eliminação, designadamente de tudo quanto pos- sa ser identificado como perturbações disruptivas.
Recuperando a metáfora utilizada por Serres, trata-se de distinguir a lógica das grandes viagens marítimas
através do Atlântico que terão privilegiado a linearida- de para superação dos obstáculos, enquanto os viajan- tes mediterrânicos como Ulisses, construtivamente mais abertos aos imprevistos, exploraram favoravel- mente os locais temporariamente estáveis, inventan- do uma história aberta a múltiplas variáveis.
Assim, seguindo-se a via exódica, otimizam-se as potencialidades críticas dos constrangimentos, das flutuações e das circunstâncias inerentes aos percur- sos por onde despontam os desvios, em vez da busca prioritária de caminhos retos, isentos de frustrações e perturbações. Privilegiam-se, pelo seu pendor forma- tivo, a identificação e vivência dos dilemas enquanto motivações e pretextos para as problematizações. Na realidade, a vivência reflexiva e experiencial de ques- tões dilemáticas (Benítez, 2009) obriga à confrontação com opiniões, crenças, convicções e valores próprios e de terceiros, designadamente em situações e decisões académicas e profissionais ambivalentes previsíveis ou imprevisíveis, prováveis ou improváveis, mas que, enquanto tais, são incontornáveis, sob pena de, não o assumindo, se cometerem erros com consequências graves no curto, médio ou longo prazo. Trata-se, con- cretamente de conflitos de vária ordem que, no qua- dro das opções existentes ou inovadoras, poderão ter a ver, por exemplo, com a difícil gestão de interesses pessoais, sociais, ambientais e de recursos.
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Concorrentemente, a salvaguarda e a exploração for- mativa da complexidade organizacional dos fenóme- nos objetivos e das decisões, implicam de facto o poli- morfismo pedagógico antes referido, o qual permitirá e potenciará, através de uma cultura académica exi- gente e profunda, a sua exploração crítica. Exploração esta que exige a abertura proporcionada pela conju- gação, entre outras componentes, de percursos e pro- cessos autónomos de aprendizagem, o intercâmbio de experiências com as realidades sociais e profissionais exteriores às escolas, o estudo solitário e em grupo, a escuta de palestras e lições e o acesso integrado a tec- nologias, ou seja, uma formação que coerentemente privilegie as mais-valias de todas as conceções pedagó- gicas, conforme a natureza das temáticas, das proble- máticas, dos condicionamentos e dos protagonistas.
Para não concluir…
É urgente, em termos práticos, a promoção de debates com a participação inter e transdisciplinar de docen- tes, estudantes, profissionais, responsáveis políticos e de empresas e investigadores, designadamente de áreas como a epistemologia, a filosofia, as ciências da educação e ciências empíricas. Na verdade, im- porta evitar que se continue a laborar num reducio- nismo ideológico, o qual tende a privilegiar, inclusive em nome da inovação, lugares-comuns tradicionais acrescidos da ilusão disruptiva de novos slogans.
Visando a educação em geral e a formação no ensino superior a realização da plenitude humana, indivi- dual e social, é dramático que se persista em pretendi- das e falsas neutralidades de cariz positivista, as quais escamoteiam precisamente, em favor de uma ilusória objetividade, a dignidade humana que tem de ser res- peitada e promovida pela educação com um papel de- cisivo na realização do potencial que cada indivíduo e cada grupo social encerram.
Consciente de que o presente artigo exige aprofun- damentos a propósito de cada um dos seus tópicos, o mesmo pretende ser apenas um alerta crítico por par- te de quem reflexiva e implicadamente participou em atividades de promoção da aprendizagem nos vários graus de ensino, bem como na formação dos respeti- vos docentes.
Atlan, H. (1991). L’intuition du complexe et ses théo- risations. In F. Fogelman-Soulié (Org.), Les théo- ries de la complexité, autour de l’oeuvre d’Henri Atlan (pp. 35-45). Seuil.
Benítez, L. (2009). Atividades e recursos para educar em valo- res. PCC.
Callari Galli, M., Cambi, F., & Ceruti, M. (2003). For- mare alla complessità: Prospettive dell’educazione nelle società globali. Carocci.
Deleuze, G. (2010). L’empirisme transcendantal. PUF. Gadamer, H.- G. (1999). Verdade e método. Vozes.
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Rorty, R. (1988). A Filosofia e o espelho da natureza. Dom Quixote.